Por Janine Soares de Matos Ferraz –
Volto aqui para continuar abrindo um espaço de diálogo sobre construção de paz e os pensamentos restaurativo e não-violento. E hoje o faço recordando-me de uma conversa que mantive com um interlocutor que acreditava que ele, quando precisasse escolher entre uma opção e outra, preferia buscar/criar rotas de saída/transformações positivas a refletir e discutir os motivos geradores da entrada na situação de conflito.
Esclareço que não há certo ou errado em um caminho ou outro, apenas a necessidade de autoconhecimento e responsabilização por assumir posturas vezes de entendimento, vezes de movimentação para a mudança.
Esta escolha nos faz transitar entre a eficiência, o cuidado, a memória e a construção do novo, com a consciência de que a complexidade iguala em importância todos estes valores e o desafio é harmonizá-los.
O meu interlocutor como dito tem foco na eficiência, na identificação das rotas de fuga e na construção do novo. Evidenciar isso me fez dividir com ele um aprendizado sobre a Justiça Restaurativa e uma experiência vivida na Rua Londres, em Santiago, no Chile.
A professora Isabel Maria Sampaio Oliveira, no Curso de Pós-Graduação em Justiça Restaurativa da Faculdade Madre Thais, ao lecionar a disciplina Justiça Restaurativa, Dimensões e Interdisciplinaridade, dividiu conosco os aspectos históricos da Justiça Restaurativa. Ela nos explicou que, na década de 1970, durante a Guerra Fria e seu processo de polarização, os pacifistas buscavam uma estratégia de interlocução que transcendesse o debate, deixasse de ter uma incidência apenas epistemológica e passasse a existir no mundo real.
Neste contexto, a espiritualidade se voltou à estratégia de se construir conexões humanas e surgiram personagens importantes do pensamento restaurativo e não-violento como Jonh Paul Lederach, Martin Luther King, Desmond Tutu e a Teologia da Libertação.
As práticas restaurativas são a operacionalidade das bases filosóficas da alteridade, dos direitos humanos, da comunicação não-violenta e da escuta empática. São a sua dimensão concreta.
Há um deslocamento do ideário para buscar uma expressão concreta para a comunidade. Estas práticas têm em si uma voz, um olhar, uma escuta. Não são feitas no plano da individualidade. Elas habitam no coração de quem as cria e nos atos de execução de quem as sustentam e criam pontes de apoio, plataformas de sustentação pessoais, comunitárias, institucionais, estatais e planetárias.
As práticas restaurativas muitas vezes visam a atender o microcosmo da humanidade. São ações que “não retiram as tropas americanas do Iraque”, mas transformam os cenários conflitivos que cercam pessoas em suas comunidades e tem o poder mobilizatório, integrador e ensejador de autonomia.
São atos encapsulados em uma expressão de valor muito maior. Nelas, todos somos convidados ao contato mais íntimo com a essência do nosso ser, com a nossa dimensão ontológica, nossa substância de ser gente. E também a uma imersão na prática, a fim de criarmos realidades diferentes, transformadoras de conflitos de forma positiva.
Tudo que disser respeito à vida humana; tudo que pudermos fazer para fortalecer a dimensão colaborativa de pacto, mediante a narrativa de nossas histórias com a participação de um facilitador que tenha a dimensão intelectual, mas que acima de tudo possa vislumbrar uma aliança de proteção à vida e que traga em si as características da escuta empática, da humildade, da assertividade, da flexibilidade, do autoconhecimento, da autonomia, do desenvolvimento dos próprios dons, da perspectiva holística, da autenticidade e da compaixão.
É na força da narrativa verdadeira que os conceitos atravessam as almas. É nisso que acreditamos quando desenvolvemos práticas restaurativas e fazemos o convite, após todos os sofrimentos humanos, a não perder a luz sagrada que em cada um habita.
Na Justiça Restaurativa, esta postura prospectiva que cria pontes e rotas para rompimento de ciclos de violência convive com a honra à memória. Nós escolhemos nomear os nossos antepassados e ouvir as dores decorrentes das desconexões da nossa memória apenas restaurativamente, sem intenção terapêutica, de buscar respostas, ainda que o efeito terapêutico possa ser alcançado.
O tempo e suas dimensões demandam respeito. Aprendemos a lidar com o tempo e nos desapegamos dos resultados. Temos cuidado com as sementes e com os frutos.
Com Drummond de Andrade, expressamos a nossa compaixão, e abrimos espaços para que as pessoas possam nos falar sobre nunca esquecer daquele acontecimento, na vida de suas retinas tão fatigadas. E nós também podemos escolher dizer que nunca nos esqueceremos que no meio do caminho tinha uma pedra.
E olhando para estas pedras vamos erguendo nossos castelos de resiliência, entendendo-a como a mabaça do gerúndio, que vai se construindo e reconstruindo, e nos trazendo a possibilidade de nos mantermos vivos, de revisitarmos a nossa história, de preservarmos a nossa memória, de contarmos as nossas narrativas, de falarmos de nós, de vivenciarmos o luto em seus diferentes níveis, para sairmos do platô da alienação.
Com os pretos no Ceará, marcamos o início da nossa abolição, e escolhemos não desembarcar das nossas práticas cativos.
Práticas restaurativas não são cemitérios, são a preservação da memória da barbárie, para que não cresça, nunca mais aconteça e não se esqueça. São os paralelepípedos da Rua Londres, em Santiago, no Chile, que nos levam à Casa da Memória Londres 38 [1].
Nós criamos pedras de tropeço e abrimos os portais entre as brumas, conscientes que o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos pensamentos [2], e talvez, no fim, transitando, cheguemos ao novo.
Neste novo, o crime é uma violação a pessoas e relacionamentos. Nesta justiça de consenso e coesão, a solução é construída pelos envolvidos. Nesta justiça de escuta, a palavra é das partes. Prioriza-se os interesses da vítima, almejando a reparação do dano e a superação do trauma, propiciando o atendimento às necessidades de segurança e superação. Busca-se a responsabilidade do ofensor e a sua reintegração com a vítima e a comunidade. Não se busca o perdão. Permite-se que as pessoas afetadas pelo ilícito compartilhem sentimentos, experiências e escolham a forma de atender às necessidades e, ao ofensor, a compreensão das causas e consequências do seu comportamento e assumir a responsabilidade de forma efetiva.
E com estes aprendizados compartilhados, eu e meu interlocutor nos vimos pontes, compartilhamos nossos sentimentos e necessidades em meio a um grande conflito pelo qual fomos tragados. E estes ensinamentos nos permitiram auxiliar na gestão de uma crise de forma que a barbárie não nos encontrasse novamente, distraídos, às 15 horas, de uma terça-feira.
Mas, isso é assunto para um outro encontro…
***
Notas:
[1] https://www.melevaviajar.com.br/museu-e-casa-da-memoria-londres-38-a-casa-do-terror-da-ditadura-militar-do-chile/
[2] “Houve um tempo em que um viajante, se tivesse disposição e conhecesse apenas uns poucos segredos, poderia levar sua barca para fora, penetrar o mar do Verão e chegar não ao Glastonbury dos monges, mas à ilha sagrada de Avalon; isso porque, em tal época, os portões entre os mundos vagavam com as brumas e estavam abertos, um após o outro, ao capricho e ao desejo do viajante. Esse é o grande segredo, conhecido de todos os homens cultos de nossa época: pelo pensamento criamos o mundo que nos cerca, novo a cada dia.” (Trecho retirado de “A Senhora da Magia — As Brumas de Avalon” de Marion Zimmer Bradley)
JANINE SOARES DE MATOS FERRAZ é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, membro da AJD e idealizadora do Projeto Coração de Tinta.
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)
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