Por Kakay

“Borges não toleraria enxergar nestes tempos de absoluta claridade do caos.”

–Ronaldo Cagiano, no poema “Pressuposto”

São muitos anos de descaso acumulado no trato criminoso com a natureza. De certa maneira, todos nós somos responsáveis pelos maus tratos. Claro que em escalas muito diferentes.

Não pode ser a mesma coisa uma garrafa plástica que se joga no chão, ou que não é recolhida na rua, e a destruição dolosa das nascentes para fazer uma pastagem em larga escala. Mas a garrafa plástica vai se juntar a outras e vai entupir as bocas de lobo, que poderiam ajudar no escoamento das águas.

Impressiona imaginar que a eliminação de uma estrutura jurídica de contenção dos abusos seja algo planejado e meticulosamente pensado.

A imagem da reunião ministerial de Bolsonaro durante a pandemia, na qual seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse, sem rodeios, que era necessário aproveitar que a imprensa estava cuidando desse problema para “passar a boiada” é de uma crueldade sem limites. E ele explicava para seus cúmplices, com detalhes, quais seriam os planos de desmanche para, “de baciada”, mudar as regras ligadas à proteção ambiental e à área de agricultura.

Criminosamente defendeu, na frente do presidente da República e seus ministros, que fosse mudado todo o regramento e simplificadas as normas do Iphan, do Ministério da Agricultura e do Ministério de Meio Ambiente. Criminoso!

Tive uma conversa com 2 grandes pecuaristas sobre o apoio poderoso e apaixonado de boa parte da classe a Bolsonaro e me espantei com a frieza da análise.

Ambos concordam que a política do governo Lula para o setor, em se tratando de juros, empréstimos, financiamentos e apoio, é muito melhor do que a do Bolsonaro. Porém, consideram que é mais importante uma política menos eficiente, mas com nenhuma fiscalização. Até porque se sentiam mais seguros para fazer o que bem entendessem com o meio ambiente.

Essa atitude declaradamente destrutiva do ex-presidente forjou uma imagem que preencheu o imaginário caubói do homem que vive do campo.

Quando Bolsonaro declara que o Exército norte-americano fez um belo trabalho ao exterminar os indígenas nos EUA, está bajulando boa parte dos ruralistas, que vê nos povos originários uma fonte de atraso e de problemas.

É só relembrar alguns discursos do ex-presidente aos ruralistas, nos quais exaltava o tratamento que hoje em dia é dispensado em comparação com como o Ibama e o ICMBIO tratava antes. Ele se jactava de facilitar as irregularidades pela não fiscalização. Criminoso!

A tragédia que ocorre no Rio Grande do Sul tem muitas faces. É uma tristeza sem tamanho ver o povo simples, com sotaque do interior, rosto queimado de sol, agarrar-se a uma esperança vã e não querer sair da casa onde mora.

Com água até o peito, balbucia palavras desconexas, impregnadas de perplexidade. E, nas cidades, a falta de luz e de água potável, em contraste com a fúria e a força avassaladora das águas da chuva e dos rios, deixa um cenário de medo e de guerra.

A natureza assumiu o controle do destino. Não há nada que se possa fazer para impedir o avanço do caos. O acúmulo dos erros e dos abusos não pode ser contido em meio à desgraça instalada.

E quando a água baixar e voltar ao seu leito natural, outra tragédia estará ocupando todos os espaços. Infelizmente, boa parte dos corpos dos desaparecidos surgirão em estado de avançada decomposição. As doenças, várias, ocuparão as manchetes hoje dominadas pela enchente. A falta de condições de várias estruturas, como casas, prédios públicos e aeroporto levará a uma sensação de cidade fantasma e fala-se, em hipóteses extremas, até mesmo na necessidade de reconstrução de alguns setores. Ou seja, o desastre está ainda muito longe do fim.

O homem resolveu enfrentar, desafiar e desprezar a natureza e perdeu. Agora, milhares de brasileiros pagam a conta. Com a vida. Com a saúde. Enfrentando a fome e o desemprego.

Como ensinou o gaúcho Mário Quintana, no poema “Diário de viagem”:

“O poeta foi visto por um rio,

por uma árvore

por uma estrada…”

Depois de tantos dias de espanto e susto com a dimensão dos estragos, já é hora de fazermos o enfrentamento, na busca da identificação e responsabilização dos culpados.

O esforço do governo federal é absolutamente louvável. Mas, é preciso que a sociedade eleja, como pauta, o que fazer para mudar a maneira irresponsável de tratar a natureza. Identificar quais foram os políticos que se dedicaram, em busca de dinheiro, voto e poder, à retirada da legislação de salvaguardas que protegiam a natureza do avanço do caos. Identificar e denunciar.

É claro que, contra a estupidez, às vezes, não há muito o que fazer. O governador do Rio Grande do Sul se manifestou contra as doações, salvo em dinheiro, pois o excesso delas estaria atrapalhando o comércio local. A fala parece ser falsa de tão absurda. Cruel, surreal, mas, infelizmente, verdadeira.

Que mulheres, crianças, idosos morram de sede, de fome e de frio em nome de um “comércio local” que, por sinal, está fechado, debaixo d’água, em boa parte pela irresponsabilidade e ganância de alguns políticos.

É hora de responsabilizar os divulgadores criminosos das fake news, de desnudar os erros grosseiros dos políticos, de mostrar aos desabrigados que, em tragédias como essas, a natureza não tem culpa. É tão vítima como os que sofrem a fúria das enchentes.

Lembrando Rainer Maria Rilke:

“Escuridão, minha origem,

amo-te mais que a chama

que é limitada,

porque só brilha

num círculo qualquer

fora do qual ninguém a conhece.

Mas a escuridão tudo abriga

figuras e chamas, animais e a mim,

e ela também retém

seres e poderes.

E pode ser uma força grande

que perto de mim se expande.

Eu creio em noites.”

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 65 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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