Por Lincoln Penna

O presidente Lula fez o que deveria e poderia fazer ao trocar os generais no comando do exército.

Agiu como comandante em chefe das Forças Armadas, uma vez que não é apenas o chefe de um governo eleito pelo povo, mas também chefe de estado. Repercussões dessa decisão certamente ocorrerão em virtude de um costume político refém de uma tradição que se perpetua no Brasil, a da autonomia absoluta dos militares em relação ao poder civil. Situação inadmissível até porque viola a nossa Constituição que reafirma esse princípio de autoridade do presidente.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumprimenta o novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva. (Foto: Palácio do Planalto)

Tenho sustentado a tese de que os militares têm tutelado a República, especialmente o poder executivo de modo a interferir direta ou indiretamente nos rumos dos sucessivos governos, até que através de um golpe clássico se apoderaram de fato do comando desse poder em abril de 1964. Na concepção das gerações de militares, desde a implantação do regime republicano até hoje, com as inevitáveis conjunturas próprias de cada tempo, a República para eles lhes pertence.

Essa tese nada tem a ver com o suposto poder moderador, ultimamente objeto de justa repulsa de quem se ocupa em explicar as sucessivas intervenções dos militares ao longo de sua constituição como protagonista na defesa e consolidação do golpe que levou à derrubada do império.

A tutela tem a ver com uma leitura histórica da arma que teve papel decisivo nos rumos do país desde a Guerra do Paraguai, cujo mérito como sabemos é altamente discutível, passando pela Proclamação da República e se completando com a participação da FEB nos campos da Itália na guerra justa contra o nazifascismo, e assumida pelos militares.

Claro que houve nesse caminho revezes e comportamentos nada edificantes, como o ocorrido no interior da Bahia na conhecida Guerra de Canudos contra os pobres sertanejos liderados pelas prédicas de Antônio Conselheiro. Esta malfadada intervenção acabou por reforçar os grupos oligárquicos que passaram a dominar plenamente a Primeira República, que até os anos de 1920 conheceram um autoisolamento dos militares, salvo na concorrida disputa eleitoral de 1910. Um dado episódico.

Prisioneiros do arraial de Canudos após o confronto com o Exército retratado em “Os sertões”; a foto fez parte da exposição “Euclides da Cunha. Os sertões — testemunho e apocalipse”, na Biblioteca Nacional. (Arquivo Nacional)

Essa situação de descompromisso com os valores republicanos provocou a indignação de jovens cadetes tornado oficiais egressos da Escola Militar, foco das agitações que no final do século anterior haviam mobilizado a consciência cívica da mocidade militar, que nos anos de 1920 não só repudiou como pegou em armas para promover mudanças diante de atos atentatórios aos princípios republicanos.

Movidos ainda por uma ideia ingênua de que mudando os governantes o Brasil rumaria para se encontrar com os seus legítimos anseios, mesmo assim o Tenentismo deu início a mudanças sem que, no entanto, chegassem a alterar fundamentalmente as relações sociais de produção ao desalojar o poder do latifúndio. Contudo, influíram grandemente junto à alta oficialidade no sentido de levá-las a assumir de novo forte influência na política nacional.

Após o golpe de 1930, também conhecido como a Revolução Liberal, de outubro daquele ano, o país mirou o caminho da modernização capitalista sem deixar de remover as relações pré-capitalistas, que em troca de benesses concedidas aos representantes do mandonismo local, reforçaram a nossa tradição da política conciliatória.

Diante da ascensão das forças sociais do mundo do trabalho, Vargas ao introduzir seu terceiro “mandato”, uma vez que tinha sido alçado à presidência pela via extralegal do movimento que depôs o candidato eleito em 1930, Júlio Prestes, num dos pleitos mais fraudulentos daqueles tempos, e depois eleito pelos constituintes de 1934 como presidente constitucional, com o golpe do Estado Novo em 10 de novembro de 1937 tornou-se de novo presidente de uma ditadura civil militar. Longo período de 15 anos de governança com distintas formas de governo.

Portanto, não foram as correntes reacionárias do latifúndio e da direita dos grandes centros urbanos, uma burguesia subserviente, que conduziu ao golpe que teria o sentido de garantir a imersão ao capitalismo. Foram as forças sociais da classe trabalhadora, um operariado que tinha se constituído desde os tempos da Primeira República pelos imigrantes europeus que inspirou a centralidade do poder coligado das altas classes urbanas e rurais. Surgia o Estado Novo em 10 de novembro de 1937.

Foi montado um aparato para cooptação dos sindicatos operários e da massa trabalhadora em geral por parte do novo governo de Getúlio Vargas, que pode assim ao mesmo tempo atrair a classe operária concedendo direitos e servindo-se dela para usá-la para conter as pressões crescentes dos grandes proprietários de terras.

O presidente do Brasil, Getúlio Vargas, e dos EUA, Franklin Roosevelt, a bordo do USS Humboldt, durante a Conferência do Rio Potenji, com Harry Hopkins, conselheiro de Roosevelt (à esquerda) e Jefferson Caffery, embaixador dos EUA no Brasil (à direita). (Arquivo Nacional)

Todavia, a Segunda Guerra Mundial influiria bastante numa outra esfera de cooptação. Refiro-me à política imperialista que passou a adotar a América Latina como parte do espaço estratégico de defesa norte-americana. Tratativas foram feitas entre os dois países durante o desenrolar do conflito mundial com ganhos como a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), hoje uma empresa privatizada, e enormes perdas no que se refere à soberania do país.

Logo após o término da guerra, em 1948, foi firmado o acordo com os EUA no que se refere a uma suposta ajuda na área militar resultando na criação da Escola Superior de Guerra (ESG), cujo conteúdo teórico e metodológico se inspirava na lógica de um anticomunismo à época nada disfarçado tendo em vista a rápida ascensão no cenário internacional da Guerra Fria. Tudo em meio à campanha o petróleo é nosso!

Resultando na criação da Petrobras em 1953.

O Brasil passaria a ser no pós-guerra um país submetido a essa lógica, daí as frequentes pressões e influências sobre a sua política externa e interna, camuflada esta última como ajuda para operar o incremento de acordos comerciais amplamente favoráveis aos yankees. Em paralelo, a interferência nas decisões do governo, sobretudo no novo período de Vargas, o denominado segundo governo, mas na verdade a quarta modalidade de governança, agora eleito diretamente pelo povo. Neste seu novo governo (1951-1954) ele foi contrário ao envio de tropas brasileiras na guerra da Coréia, logo no início de seu mandato inconcluso pelo suicídio, não obstante ter firmado acordos de assistência militar com os EUA.

Com o advento da Revolução Cubana de 1959 e a assunção do regime socialista proclamado em 1961, as pressões sobre a América Latina se acentuaram. E no caso do Brasil mais ainda tendo em vista a posição estratégica e logística de modo a impedir que o exemplo cubano se alastrasse por todo o território latino-americano. Daí, uma das fortes razões do golpe de abril de 1964.

Jair Bolsonaro, então deputado, comemora o golpe de 1964. (Reprodução)

Em todos os momentos, os militares estiveram de alguma forma presentes nos embates havidos, ao mesmo tempo formando gerações que passaram a identificar permanentes ameaças ao país. O anticomunismo passaria a ser uma constante nas diretrizes dos militares e no caso do exército as ordens do dia estão aí para demonstrar a força dessa ideologia que se espraiou dentro e fora da corporação. E aí surgiram atitudes que conspiram com os valores sagrados da defesa do povo. Refiro-me à questão do abandono objetivo dos povos indígenas, que hoje padecem de assistência do estado.

Com isso, tem se perdido a noção primária de que o exército, assim como as demais Forças Armadas são instituições de estado, ao transformá-las em instrumento de apoio à sanha devastadora de madeireiros e da mineração ilegal a praticar políticas de agressões à natureza e aos povos da floresta.

Por outro lado, o furor anticomunista por vezes travestido em antiterrorismo, antipetismo e contrário até mesmo a qualquer medida reformista, tem sido ultimamente trabalhado no que se convencionou chamar de “guerra híbrida”, que nada mais é do que o expediente que lança mão de ações extralegais para difundir criminosamente conteúdos falsos com vistas a ganhar corações e mentes.

No momento atual do novo mandato do presidente Lula, a possibilidade de novos atentados à democracia como espaço de coexistência do contraditório, elemento inerente às lutas de classes próprias de uma sociedade de classes e com alto índice de desigualdade social não é apenas uma ameaça distante. Muito menos alguma coisa que lembre uma teoria da conspiração. É algo real. É, inclusive, reafirmado por estudiosos que têm lidado mais recentemente com experiências de desestabilização de governos populares para disseminar no mínimo desconfianças quanto à lisura de seus dirigentes.

Fato é que atribuem às lideranças populares práticas de corrupção quase sempre inexistentes.

Lula acompanhado por Nelson Jobim e os comandantes militares – 20/12/2010. (Reprodução)

Assim, tal qual os tenentes da década de vinte, não bastam mudanças nominais, ainda que imediatamente seja uma solução emergencial. O que importa é que se faça uma profunda mudança nas corporações militares para que se elimine a lógica do inimigo interno, hoje consagrado nos escalões das Forças Armadas implantada que foi pelo regime da ditadura de 1964 e que perdura entre nós.

Ou a democracia que assegura o exercício do contraditório é preservada, e para que isso aconteça é necessária uma reforma política ampla que inclua todas as instituições dentre elas a das corporações militares, ou as tensões tendem a intensificar as lutas de classes dado que a grande maioria da população não irá suportar conviver mais tempo com as injustiças sociais que se avolumam com implicações imprevisíveis dentro dos marcos da legalidade. Afrontá-la não é tarefa de militares cônscios de seus deveres para com a nação brasileira.

O que se encontra em risco é o binômio República e democracia, ambas carentes de fortalecimento de seus princípios básicos. O regime da coisa pública tem sido lesado por grupos privados que impedem o seu funcionamento pleno, assim como as práticas democráticas se encontram restritas a violentar o poder popular, único caminho para entendermos o significado real de democracia.

A continuar assim, não me surpreenderia com novos golpes. É preciso, pois, exercer o poder de decisão por parte do governo, tal como foi feito com a substituição do comandante do exército. O perigo é evitar que venha do lado oposto ao que deseja o povo brasileiro em sua grande maioria. O bolsonarismo arregimentou muitos incautos que precisam ser integrados na rota das transformações estruturais, que no fundo é do interesse das grandes massas alguma parte delas arregimentada pelas hordas da extrema-direita.

O governo Lula tem uma oportunidade ímpar, a de dar início a um processo de reenquadramento das Forças Armadas como defensoras da pátria e dos verdadeiros patriotas, ou seja, do povo trabalhador e seu legítimo desejo: o de uma vida digna. Promover reformas nas corporações militares não é revanchismo, de jeito nenhum. Trata-se de políticas corretivas a anular desvios que vêm de longe e contribuem para afrontar as boas tradições militares e honrar o seu compromisso com os mais vulneráveis, como as comunidades originárias, os quilombolas e demais populações carentes.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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