Por Sérgio Rodrigues –
Está escrito desde o século 17 que palavras não vão deter Bolsonaro.
O governo Bolsonaro tem tido, entre outros aspectos horripilantes que o país levará gerações para superar (na hipótese otimista), a capacidade de demonstrar os limites canhestros da palavra diante da ação.
Quem gosta de palavras costuma superestimar seu peso, chegando até a lhes atribuir a criação do mundo. Está no Evangelho de João: no princípio era o Verbo. Bom, parece que não é bem assim.
Ao longo dos últimos meses, enquanto o presidente agredia com violência crescente a democracia, a paz social e a própria honra dos brasileiros, virou uma espécie de passatempo entre nossos letrados tentar dar um nome àquela desgraça.
Aumentar aos poucos a dose de ultraje contida nas palavras, subir mais e mais o tom dos adjetivos indignados e das metáforas escandalizadas, tentando fazer frente à peçonha bolsonarista, provou-se não apenas vão como, provavelmente, útil ao jogo de polarização máxima estimulado pelo presidente.
Bolsonaro discursa para apoiadores em Brasília (foto acima).
Um símbolo patético do fracasso das palavras são as notas de repúdio emitidas pelos demais Poderes da República (“é lamentável etc.”) a cada novo avanço do chefe do Executivo no terreno do inaceitável.
Esse malogro da linguagem já estava comicamente claro em agosto do ano passado, quando propus a amigos escritores criar neologismos para tentar dizer o que Bolsonaro tinha de indizível.
Foram esforços louváveis, reunidos na coluna “Quero uma palavra nova”: neféstilo, patúfrio, gosmorrúnculo, suga-sebo, todo-escroto, nucuz etc. Mas nada era suficiente.
Todas as tentativas estavam condenadas de saída porque o perigo representado por Bolsonaro é do tipo que está além das palavras, além da retórica.
Não há novidade nisso. Coube ao mais famoso louco da literatura a explicação definitiva para a inferioridade das letras —corporificadas em leis, códigos, tratados— diante das armas.
No volume 1 do “Dom Quixote”, lançado em 1605, o cavaleiro lunático impressiona seus ouvintes pela lucidez do discurso em que reconhece a nobreza de objetivos das letras: ditar as leis, interpretá-las, tudo justo e importante para a vida em sociedade.
No entanto, as armas têm poder muito maior, pondera Quixote, porque garantem a paz, “o maior bem que os homens podem desejar nesta vida”. Sem a paz, a lei das letras deixa de valer, subjugada à lei da espada.
Ou seja: diante de quem desafia a cidadela da lei, jamais será suficiente a resposta contida nas letras sem o apoio das armas que garantem a paz.
Para muitos críticos, quem fala pela boca do engenhoso fidalgo nessa passagem é o autor Miguel de Cervantes —homem de ação, valoroso soldado espanhol, além de homem de letras, autor do romance que inventou os romances.
Cervantes ensina que lutar contra a virulenta bolsopatia que nos assola requer ação, não palavras. Estas fazem barulho, mas se deixam anular por qualquer imoral “e daí?”.
Quando se fala de ação, de força, é natural pensar nas Forças Armadas, mas a primeira espada em defesa da lei está nas mãos de Rodrigo Maia, que se recusa a usá-la.
Dizem que não há condições para um processo de impeachment em meio a uma pandemia, que cabe aos adultos na sala não aprofundar a crise enquanto se acumulam corpos, coisa e tal.
Pode ser. Só não vale fingir que algum dia o Brasil já tenha sido tão esculachado e humilhado como agora.
Essas coisas podem levar a morte mais longe ainda, até a alma —e isso, infelizmente, não é só um jogo de palavras.
Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira” / Fonte: Folha de São Paulo.
MAZOLA
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