Por João Marcos Buch –

– Já foi nesse lugar?

– Nesse especificamente não, mas já estive no complexo.

– Vai ver umas arminhas lá! Na rua eles ficam munidos, avaliando quem entra.

– Sim, estou indo para um evento sobre segurança pública.

– Seguranca Pública? Lá? Hahaha!

Nunca soube se a gargalhada do motorista foi de nervosismo ou de desdém. De minha parte, eu não estava nada nervoso e o desdém não faz parte de meu vocabulário. Naquela quente manhã, própria de um tórrido verão que ainda nem começara, embarquei no táxi no Arpoador, de terno e gravata, rumo à Maré, também conhecida por Faixa de Gaza.

Estava no Rio para uma série de eventos. Primeiro, sobre segurança pública nas comunidades vulnerabilizadas, depois, sobre racismo institucional, promovido por auditores externos do Tribunal de Contas do Estado e, finalmente, sobre a malfadada privatização de presídios, na ALERJ, em denúncia do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Esses dois últimos eventos merecem um texto próprio, pois tão necessários quanto. Por ora, fico com o da Maré.

No carro, passando pela orla de Copacabana, aproveitei para manusear um livro que ganhara pouco antes, chamado “Como Salvar a Democracia”, dos mesmos autores de “Como as Democracias Morrem”, os conceituados professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os poucos trechos que li fizeram-me pensar, aí o título deste texto, sobre as populações periféricas e a democracia pela qual lutam, tudo que logo mais eu presenciaria.

Em uma análise sobre a conjuntura política americana, da qual o Brasil parece ter sido um arremedo na última década, os autores pontuam os momentos históricos em que a democracia daquele país correu riscos, um deles na era Trump. Para tanto, dizem que houve necessidade dos partidos democráticos unirem-se, em uma grande coalizão, para derrotar o fascismo ou protofascismo ou o grupo que atacava a democracia – esses conceitos são complexos e aqui não vêm ao caso. Junto a isso, seguem os autores, houve necessidade das instituições agirem com extremo rigor. Pela primeira vez um ex-presidente daquele país está sendo processado pelos abusos praticados em seu governo. A tudo isso se chamou de democracia militante e de coalizão.

Imerso nesses pensamentos, fui trazido à tona pelo motorista:

– Chegamos! Agora é descobrir o local do evento.

Da Avenida Brasil adentramos numa rua em direção ao centro do Complexo da Maré.

A cena que se desdobrou não foi das “arminhas”, que realmente vi. O que meus olhos encontraram foi uma grande maioria de pessoas nos afazeres do seu dia, em lojas, lanchonetes, mercados, oficinas, tudo em um emaranhado de construções. A Maré é plana, retangular e apertada, e é carente de saneamento e estruturas públicas, como se sabe. Ocorre que ela também é cheia de sons, aromas, imagens, em resumo, lateja humanidades.

Perguntando aqui e acolá, logo paramos em frente ao meu destino. Paguei a corrida e, assim que saí do carro, fui acolhido com sorrisos e abraços.

O evento era promovido pela Redes da Maré, organização não governamental que, em última análise, tenta fazer o que o estado não faz, ou seja, proporcionar espaços de saúde, educação, espaços libertários, para uma população carecedora de todos os direitos que a república diz conferir e não confere.

No bate-papo, perante uma atenta plateia, falei da segurança pública que deveria existir, aquela que constitucionalmente é prevista para proteger, sem opressão, abuso ou tortura. Neste ponto, busquei um texto que havia recentemente feito para apresentação de um livro chamado “ENTRE REDES E OUTROS NÓS: olhares sobre a privação de liberdade”, organizado pelas doutoras Cecília Freitas e Elaine Andreatta e pelo doutor Ricardo Peres. A obra contém artigos para a compreensão da realidade que cerca o sistema prisional e a violência. Ressaltei que existe uma ferida aberta nas veias de nossa nação. Ela sangra há muito tempo, desde que populações negras foram sequestradas da África e começaram a chegar ao país, para um processo implacável de escravização. A necropolítica então dava suas caras, aprofundando-se a cada ano, cada década, por séculos, transcendendo a inverídica abolição da escravatura e fincando sua marca seletiva, intolerante e violenta, no que hoje conhecemos como unidades prisionais, os navios negreiros do século XXI.

Essas reflexões serviram para aquele momento na Maré. Pessoas vulnerabilizadas preenchem com seus corpos pretos uma comunidade sem acesso à cidadania, sem oportunidade de crescimento digno, em constante sujeição à violência. Especialmente crianças, adolescentes e idosos são alijados dos bens básicos para sustentação de um mínimo existencial. Os direitos humanos para essa população em geral não saíram das brancas letras da Declaração Universal de 1948.

O fato é que na Maré a luta contra o fascismo permanece. Sim, porque o estado acaba desempenhando um papel de inimigo, alguém que seleciona e aniquila, sem mais. O argumento de sempre é a guerra contra as drogas, assunto complexo, em cuja simplista fórmula é tão fracassada que a única pergunta que resta é: até quando?

Pois bem, mesmo diante de todos esses desafios, vi pessoas que entendem que o caminho para superar a violência estatal é o institucional, na ocupação de espaços de poder dentro da legalidade, para que a voz da Maré seja ouvida, para que seus anseios por justiça sejam atendidos e para que parem de matar seus filhos.

A democracia se restabeleceu e em 2023 a reconstrução das instituições públicas avançou. A economia se recompôs e os índices da saúde e educação mostraram-se positivos. A empregabilidade cresceu. E o Brasil voltou a protagonizar no tabuleiro internacional, principalmente diante da agenda ambiental.

Entretanto, essa mesma democracia ainda não alcançou muitos brasileiros. Portanto, não se pode dizer que vivemos em um país com plenitude democrática.

Neste ponto é que as populações periféricas devem ser ouvidas.

Precisamos uns dos outros, para cerrar fileiras em uma grande coalizão contra o perverso cadafalso escravocrata, colonialista e patriarcal.

Passado do meio dia, despedi-me com mais abraços e entrei num carro especialmente destinado a me devolver ao hotel. Pegamos as vias por dentro da favela, superando barreiras de cada esquina. “Este caminho é mais seguro, para evitar cruzar com algum caveirão”, disseram-me. Para meu espanto, então, era mais seguro transitar por dentro de um território controlado por facções do que encontrar com a polícia!

– A Redes da Maré fez eu me reencontrar. Eu era viciado em crack, consumi por 10 anos. Agora estou em um novo caminho, limpo, mais digno. A Redes que me salvou. Estou feliz. Quero fazer faculdade – confidenciava-me o jovem motorista, negro, enquanto manobrava nas estreitas vias da comunidade.

Meia hora depois, na porta do hotel, ao me despedir do rapaz, tive a certeza de haver encontrado quem salvaria a democracia.

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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