Por Marcelo Buhatem –
A pandemia provocada pelo coronavírus trouxe reflexos em todos os setores da sociedade. No Judiciário, por exemplo, conhecido por sua estrutura tradicional e secular, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a realização de sessões virtuais ou audiências por videoconferência durante o período da pandemia de Covid-19. Entretanto, é preciso ter muito cuidado quando se considera a perspectiva de consolidar o trabalho remoto mesmo após o fim da pandemia.
Ninguém estava preparado para lidar com a crise provocada pela nova peste. O que exigiu de todos adaptações para que o mundo não interrompesse sua evolução natural. Uma situação de exceção demanda novas soluções. Mas nem todas precisam ser permanentes, devem ser utilizadas conforme o cenário. É o caso do Judiciário. Os julgamentos por vídeo conferência foram a opção viável para se assegurar o direito à Justiça mediante o fechamento dos fóruns e a suspensão das atividades presenciais devido à necessidade de isolamento social.
Porém, o que foi idealizado como solução em curto prazo, de forma duradoura pode prejudicar esse mesmo direito à Justiça.
Sem falar na importância econômica do pleno funcionamento que o conglomerado Forum atrai, pois só no Rio passam cerca de 50 mil pessoas por dia em seus corredores, movimentando restaurantes, bancas, bancos, lanchonetes, lojas etc, que oferecem emprego.
É preciso entender, ainda, que o Judiciário apresenta uma ritualística própria, que é fundamental para preservar direitos e garantias processuais. Um dos principais exemplos é o contato direto da defesa com o réu, que fica impossibilitado em julgamentos virtuais e afeta a própria dinâmica da audiência.
É inegável que o trabalho do advogado é limitado com as audiências virtuais. A retórica presencial, por exemplo, tem um impacto muito maior do que aquele que se tem visto nas videoconferências. Toda a formação adquirida na faculdade é voltada para a performance nos tribunais e não em uma tela de vídeo.
A própria legislação que rege o trabalho dos magistrados ratifica a importância de julgamentos in loco. Por isso, é obrigatório que o julgador more na comarca em que atua. Autorizações para que juízes possam residir em outras comarcas são excepcionais, dada a importância de se ter uma estrutura que evite o adiamento das audiências.
Nessa discussão, é preciso considerar que vivemos em um país que ainda registra um grande índice de desigualdade, que se reflete na falta de acesso em diversas regiões do país a uma conexão de internet de qualidade, que é um item básico para a realização de audiências virtuais.
Não ter à disposição uma tecnologia eficiente ou uma conexão confiável implica diretamente em prejuízo para as partes de um julgamento.
Sob hipótese nenhuma se quer repelir os benefícios que a tecnologia pode trazer para a Justiça. Pelo contrário, o Judiciário está atento à forma como a modernidade traz mais celeridade aos tribunais. Mas na discussão desse ‘novo normal‘ que está por vir, é preciso ponderar com responsabilidade as mudanças que afetarão o nosso dia a dia.
Um Poder Judiciário digno e acessível encontra-se nos direitos e garantias individuais do cidadão, consolidados no artigo 5°, inciso XXXV da nossa Constituição. O processo deve também ser acessível, independente do poder aquisitivo, devendo ser prestada assistência jurídica gratuita aos necessitados, garantindo aos litigantes o contraditório, e ampla defesa, dentre tantas outras garantias que não podem ser de forma alguma prejudicadas. Assegurar que essas garantias se mantenham intactas deve ser a prioridade na retomada pós-pandemia.
Bom lembrar, que o próprio Corregedor Nacional, futuro presidente do STJ, Ministro. Humberto Martins, defendeu a importância e necessidade da presença do juiz nas comarcas. Por certo, seria insuportável saber que nas pequenas e médias comarcas estariam presentes, Prefeito, Presidente da Câmara de Vereadores, Promotor de Justiça, Defensor, Delegado de Polícia, Polícia Militar, Médico, Bombeiros, Padre, Pastor etc., e o magistrado, em... home office.
MERCELO BUHATEM é presidente da Associação Nacional dos Desembargadores (ANDES)
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