Por João Marcos Buch

Para além de uma formação esterilmente acrítica e puramente técnica, somos marcados pela ausência de noção do que ocorre atrás das grades.

Na obra Escritos da casa morta, produzida por Dostoiévski depois de sua prisão na Sibéria e lançada entre 1861 e 1862, o tratamento humano a que todo preso tem direito é algo que pulsa do início ao fim. “Qualquer um, seja quem for e por mais humilhado que se sinta, mesmo que instintivamente, mesmo que inconscientemente, ainda assim exige respeito à sua dignidade humana”, registra o autor.

No Brasil contemporâneo, exigir respeito à dignidade humana nas prisões continua sendo de extrema importância, diria que vital. É que, apesar de todo o conhecimento, de toda a ciência, lamentavelmente continuamos aprisionando seres humanos e os tratando de maneira odiosa, infligindo-lhes dor. Com uma população prisional de mais de 800 mil pessoas, para cerca de metade de vagas, as condições de vida na cadeia se deterioraram absurdamente.

A academia e pesquisadores debruçam-se sobre esse tema há um bom tempo. Alessandro Baratta, com sua obra Criminologia crítica e crítica do direito penal, desde a década de 1980, já apertava o dedo na ferida, falando do etiquetamento e seletividade das minorias pelo sistema de justiça criminal. Victor Martins Pimenta, em Por trás das grades, destrincha o encarceramento em massa no Brasil atual e mostra toda sua injustiça.

Poderia citar vários outros autores, mas fico por aqui, para dizer que, de minha parte, sem deslembrar desses complexos fatores políticos e históricos muito bem abordados, tenho me perguntado, com mais frequência, exatamente o porquê de termos chegado a esse ponto, visto que o ordenamento jurídico que nos rege, ao menos sob minha ótica, prevê normas claras para a privação da liberdade (Lei n.7.210/84 – LEP) e proíbe penas cruéis (Constituição Federal, art.5.º, XLVII, “e”). E mais, o Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no Brasil em 1992, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, as Regras de Mandela, são alguns dos diplomas que estabelecem muito nitidamente a obrigatoriedade do respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinções, valendo, portanto, entre presos e livres. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal já declarou estado de coisas inconstitucional sobre o sistema carcerário (ADPF 347); habeas corpus coletivo já foi deferido pela mesma Suprema Corte em favor de mulheres grávidas e com filhos pequenos; a Corte Interamericana de Direitos Humanos já apontou as responsabilidades do Estado brasileiro sobre a degradação das prisões; o Superior Tribunal de Justiça já decidiu no sentido garantista; e o Conselho Nacional de Justiça tem emitido resoluções e recomendações para que se garanta a jurisdição no cárcere e se protejam os direitos das pessoas encarceradas, inclusive com fomento a alternativas penais, das práticas educacionais ao monitoramento eletrônico.

Nada obstante, a taxa de encarceramento foi pouco afetada. Houve até uma pequena redução em 2020, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Em 2019 a taxa era de 359,4 presos por 100 mil habitantes, caindo para 318 no ano seguinte. Isso pode ter sido resultado da Recomendação 62 do CNJ, que tratou da pandemia e da jurisdição penal, mas o fato é que o número da população carcerária não cedeu de maneira consistente. É como se existisse uma bolha imperfurável, que mantém a prisão sob uma pandemia permanente, que se alimenta de vírus normativos contrários ao desencarceramento — o Pacote Anticrime (Lei n.13.964/19) e a resistência às audiências de custódia são alguns deles.

Perante esse fenômeno, parece-me que nós, juízes, em uma sociedade estruturalmente racista, patriarcal e colonialista, temos alguma responsabilidade.

Nos bancos da faculdade aprendemos como deve se fundamentar uma sentença que, quando condenatória, precisa conter a individualização e dosimetria da sanção penal respectiva. São circunstâncias judiciais, legais e causas de aumento ou diminuição da pena a se considerarem, com fixação de regimes para as penas privativas de liberdade, substituições por restritivas de direitos, fixações de sursis etc. O problema é que uma parte essencial da matéria acaba não sendo abordada, qual seja: o resultado da condenação e a consequente execução da sentença no chão da prisão quando se trata de pena privativa de liberdade em regime fechado e semiaberto.

Para além de uma formação esterilmente acrítica e puramente técnica, somos marcados pela ausência de noção do que ocorre atrás das grades (talvez não queiramos ver).

Os presos condenados deste país, e mesmo aqueles que aguardam julgamento e deveriam ser tratados como inocentes, cumprem penas que não foram aplicadas pela Justiça, que não estão previstas na lei, que violam os direitos mais básicos. São pessoas que dormem amontoadas umas sobre as outras, infectam-se por doenças contagiosas como tuberculose, sofrem com falta de cobertor no frio e com falta de ventilação no calor, são ameaçadas e andam na beira do precipício, e por fim, correm o risco de cumprirem penas de morte.

E não nos pesa na consciência isso? A mim pesa, e muito!

Ao passar no concurso eu tinha na ponta da língua toda a técnica e legislação para fazer sentenças e dosimetrias perfeitas, muito bem individualizadas e fundamentadas. Algo, porém, desde então me incomodava. As condenações e penas que eu exarava, na sua absoluta maioria, destinavam-se a pessoas econômica e socialmente vulnerabilizadas, das quais os negros eram predominantes, isso era fato. A seletividade perversa do Estado, pela necropolítica, estendia-se à necrojurisdição e, por minha caneta, eu mandava pessoas historicamente marginalizadas para a neutralização da cadeia.

Aos poucos fui entendendo a perversidade desse sistema e passei a não mais o aceitar. Os mecanismos que se apresentaram para isso, que já existiam no quadro de meus saberes, como antes citado, advinham da Constituição Federal, dos tratados e pactos internacionais, dos direitos humanos. O direito penal devia ser filtrado por esse ordenamento e chamado apenas em último caso, última hipótese, sem nunca ocupar os espaços das políticas públicas que visam na superação da violência, em uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Anos depois, com essa consciência, e ciente de que o Poder Judiciário só se legitima se atuar na retaguarda da Constituição, assumi as funções de juiz da execução penal. E, então, no fundo do poço encontrei um alçapão, mais escuro e mais terrível.

Desde então, venho percebendo que se não enfrentarmos e tatearmos o cárcere, em carne e osso, nem a academia, nem os bancos das faculdades, nem as normas ou decisões das cortes superiores, nada mudará nossa percepção sobre a prisão, não conseguiremos ver sua malfadada crueldade.

Nenhuma algema, nenhum grilhão, nenhuma marca de açoite retira a humanidade do preso. Dostoiévski já sabia disso no século XIX, e nós, operadores do direito, especialmente nós, juízes, a esta altura também já deveríamos saber, deveríamos!

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.

Publicado inicialmente no LE MONDE diplomatique Brasil.  Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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