Por Siro Darlan

Participei de uma Audiência Pública na Câmara dos Deputados, em Brasília no dia 16 de abril, como representante da Associação Juízes para a democracia e passo a compartilhar com os leitores as ideias manifestadas na ocasião. O sistema judiciário, formado por maioria branca, é parte constituinte do Estado que perpetua os moldes historicamente determinados pelo racismo estrutural.

O Brasil é um país de DNA escravocrata, e que até o momento não superou esse trauma da classe burguesa que perdeu sua mão de obra escrava, e a substituiu pela mão de obra dos imigrantes e operários espoliados através de condições de trabalho de semiescravidão, marcado pela opressão das elites financeiras que filtram a entrada dos afrodescendentes e pobres na possibilidade de ascensão social.

Outro ponto historicamente importante da marca desse racismo estrutural é o colonialismo. A Europa, partindo não só de interesses econômicos como também planos de aculturação, concretizou projeto colonial por todo o mundo, marcando sua presença desde o continente americano até os continentes africano e asiático. Nesse processo a construção de duas narrativas são chave para compreendermos uma opressão que persiste determinante na luta de classes, o racismo.

Segundo propôs Darcy Ribeiro em sua obra “O Povo Brasileiro”, o salvacionismo, através da catequização e de outras formas de aculturamento formulou a crença de que os povos colonizados eram adoradores de demônios que precisariam ser salvos. Este seria um dos pontos de partida para a objetificação desse povo e para não os considerar parte da humanidade ou dos “filhos de Deus”.

A naturalização como essa sociedade assimilou a escravidão, como consequência do “darwinismo social” que enfatizou serem os europeu são de raça superior, e os demais povos inferiores, portanto escravizáveis, deixou marcas que perduram até hoje e deságua na formação das instituições brasileiras, mesmo depois da proclamação da República, como no caso do judiciário e do ministério público, onde os descendentes dos europeus ainda predominam de forma quase absoluta.

A Lei de Possessão de Terras, editada antes da Lei Áurea, garantiu que as terras brasileiras fossem distribuídas antes que os que haviam sido escravizados e seus descendentes pudessem fazer parte dessa distribuição, assim como a Constituição Imperial de 1824 que “previu a educação primária gratuita a todos os cidadãos, com exclusão dos escravizados”, já de partida, impediu o acesso aos estabelecimentos oficiais de ensino, mas possibilita que a população negra liberta frequentasse essas instituições, foram os dois atos normativos que fundamentaram a construção de uma imagem de inferioridade dos escravizados e seus descendentes, colocando-os na condição de marginalizados e nas piores condições econômicas.

Essa exclusão educacional e econômica definindo que os burgueses seriam os donos das terras e dos meios de produção e os demais seriam a força do trabalho e ficariam à mercê dessa elite estabeleceu as condições e o preço do trabalho e foram determinantes para estabelecer esse racismo estrutural existente na sociedade até o momento.

Como é o Estado que regula essas relações, o sistema judiciário que é parte constituinte desse Estado perpetua os moldes historicamente determinados pelo racismo estrutural. Reorganizando-se como uma instituição racista e estabelecendo um parâmetro de seletividade, que escolhe quando e para quem devem ser preservadas as garantias constitucionais do acusado.

Como afirmou Abdias do Nascimento e Elisa Larkin, o racismo opera de forma institucional e sistêmica. “Pessoas brancas controlam praticamente todas as instituições públicas e privadas deste país; isso permite que elas operem de acordo com os interesses do grupo racial dominante”.

No entanto  essas instituições não atuam de forma isolada. O racismo que torna a escola um ambiente hostil para crianças também motiva o comportamento discriminatório de policiais militares em relação aos negros que influencia a forma como negros são tratados no sistema judiciário. Por ser uma prática coletiva, ela contamina as instituições públicas e privadas, afetando diversas dimensões das vidas de pessoas negras neste país.

O sistema penal brasileiro, considerado por nossa Corte Máxima como “em estado de inconstitucionalidade” contempla um retrato que mostra que 56 % da população carcerária é composta por jovens com a faixa etária entre 18 a 29 anos de idade, dos quais 67% são negros. A cada três presos, dois são negros. A pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro se mostra mais assustadora ao informar que as chances de um branco  preso em flagrante ser solto ao ser apresentado ao  juiz, nas chamadas  audiências de custódia, é  32%  maior que a de um negro. Esses números nos levam a compreender que por trás desses dados há uma realidade assustadora: corpos negros como alvo de condenação do sistema penal.

No sistema repressivo brasileiro, o primeiro juiz da causa é o policial, que exerce sua função sem qualquer capacitação legal, social, e atua como representante de uma sociedade estruturalmente racista e isso reflete no trabalho do policial, empoderado com armas e autoridade, o que torna o agente um perigoso agente mais gravoso à sociedade do que o suposto delinquente que eles prendem. A realidade do poder exercido pelas milícias é o bastante para comprovar essa afirmação e os mais importantes milicianos conhecidos têm sido formados no BOPE.

Esse primeiro juízo tem sido homologado, sem questionamentos pelo ministério público que quase nunca exerce o poder de fiscalização das policias e nunca produz qualquer investigação para corroborar a sua palavra. O judiciário, pior ainda, chegou a implementar súmulas dando credibilidade absoluta à palavra dos policiais, e com exclusividade em 90% dos processos julgados.

A falta de um juizado de garantias, presente em todas as legislações civilizadas, comete o absurdo de dar validade a um julgamento pelo mesmo juiz que autoriza a coleta de provas, preside essa coleta e, evidentemente influenciado pela produção dessas “provas” por ele mesmo, sentencia, sem a devida distância da imperiosa imparcialidade, sem a qual toda decisão judicial é nula.

Em “Prisões são obsoletas?”,  Ângela Davis  afirma que “muitas pessoas nas comunidades negra, latina e indígena agora têm uma chance muito maior de ir para a prisão do que de obter uma educação decente”. Essas prisões, que facilmente se transformam em condenações, por mais que sejam um recorte temporal, é o reflexo da realidade enfrentada pela população negra, onde as garantias constitucionais como a da presunção de inocência (não culpabilidade) não lhe é garantida. Ainda que possua provas de sua inocência, essas não são aceitas pela autoridade judicial.

A forma de pensamento determina diretamente a interpretação dos significados das normas jurídicas, bem como a maneira em que o direito deveria funcionar em uma sociedade marcada pelas desigualdades raciais. Nessa linha de raciocínio, o direito pode ser usado como um instrumento de segregação racial, transformando o poder judiciário em uma máquina de condenação de corpos negros, quando não incorporada por uma lógica antirracista.

O Judiciário brasileiro formado por uma maioria branca determina o futuro da população negra. Isto posto, é necessário que haja no Brasil um sistema processual antirracista, onde as garantias constitucionais da população negra não sejam violadas por juízes racistas que contribuem para o fortalecimento do racismo estrutural brasileiro.

O direito a um processo penal justo não é uma garantia exclusiva da população branca. Na busca pela verdade através do Processo Penal é importante que as regras que determinam as jogadas processuais sejam respeitadas, que as decisões não sejam fundamentadas com base na cor do acusado e sim nas provas prevista nos autos, respeitando sempre as garantias constitucionais. A cor não informa o crime. E para que seja aplicado um processo penal justo é necessária a aniquilação total do racismo.

As lutas contra o ódio e a discriminação por razões de raça, gênero e pertencimento a grupos politicamente minoritários, como manifestação do acirramento da luta de classes instaurada sob a ordem neoliberal e do avanço do extremismo supremacista ao redor do mundo, exigem constante reflexão, debate, posicionamento e ações concretas pela Associação de Juízes para a Democracia.


SIRO DARLAN –  Juiz de Segundo Grau do TJRJ, Mestre em Saúde Pública e Direitos Humanos, membro da Associação Juízes para a Democracia, conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo, conselheiro efetivo da Associação Brasileira de Imprensa, colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.