Por Amirah Sharif

A vizinha que fez meu bolo de aniversário, há uma semana, precisou me ajudar a levá-lo em casa. Ao entrar, logo se deparou com Morena, minha filha de quatro patas que fica deitada no peitoril da janela observando quem entra e sai.

As pessoas ficam surpresas como o pescoço e focinho de Morena se encaixam em um contorno da grade. Ela fica ali, imóvel, só observando.

Morena na grade da janela

Era só para essa senhora entrar, deixar o bolo sobre a mesa e sair, mas, como ela gosta de bichos e eu também, o assunto veio à tona. Convidei-a a sentar um bocadinho.

Ela comentou sobre o olhar de Morena para mim: um olhar de gratidão. Eu apenas sorri e me calei, porque não gostaria de contar como essa querida cachorrinha estava em minha companhia.

A vizinha, então, narrou um fato triste, não apropriado para dias de aniversário. No entanto, para quem é protetor de animais, qualquer dia é dia para o trabalho e histórias de resgate de animais em risco. E, assim, fui ouvindo. Ela contou que, em um dia chuvoso e frio, ao voltar da padaria, escutou choro e gemidos vindos de um terreno baldio. Entrou em casa, deixou o pão, pediu para o marido fazer o café e voltou à rua. Procurou até encontrar um saco de lixo com cimento e um cachorro bebê feinho, sem pelo e doente.

Pegou o “peladinho” e o colocou dentro de casa. Disse que o marido reclamou, mas depois aceitou. O tempo passou e o cachorro ficou bonito e saudável. Um dia, ao sair de casa, o cão saiu atrás dela e, ao ver o vizinho, ficou muito feliz, abanando o rabo, pulando em cima do senhor. Eu aí, perguntei, já sabendo a resposta, se esse tal homem era quem tinha deixado o bichinho dentro de um saco de lixo. Ela respondeu afirmativamente.

Esse tipo de atitude de um cachorro abandonado que reconhece seu primeiro tutor não é novidade para quem convive com peludos. É amor incondicional.

Resolvi mudar o assunto, porque não gostaria de me emocionar em dia de aniversário. Então, passei a falar sobre a minha Morena, que tem o focinho parecido com o da raça Labrador: aquelas mesmas “ bochechas caídas (?)” e aquele mesmo olhar “pidão”.

A peludinha da janela foi abandonada e adotada por um casal de rua. Eu a levei para ser castrada e vacinada na clínica da veterinária dos meus filhos de quatro patas e a devolvi ao casal. No entanto, eles a venderam, em seguida. Quando soube, fiquei muito mal. Comecei a rezar para Santa Rita de Cássia, a santa dos casos impossíveis, para que eu pudesse ficar com a Morena. Passaram-se três dias e nem sinal da peludinha. Falava com todos que eu estava disposta a chamar o “exército de Roma” para me trazer Morena de volta.

Em um domingo, após quatro dias de muitas orações, por volta das 10 horas, um senhor conhecido bateu freneticamente à minha porta. Queria me informar que Morena estava na padaria. Eu, do muro, gritei tão alto o nome dela que um anjo desavisado teria ficado surdo por alguns segundos. Foi o tempo de gritar e abrir a porta, para Morena entrar e nunca mais sair da minha vida.

Um tempinho depois, um garoto me perguntou se eu estava com a Princesa. Eu iniciei uma conversa sem pé nem cabeça dizendo que Amira, meu nome em árabe, quer dizer princesa e que princesa bastava eu na casa. Um papo estranho… e fui saindo, rindo e acenando como miss em dia de concurso. Enfim, o que importa é que Morena tem família e lar.

Resolvi mudar o tom da prosa com a vizinha do bolo e falar de algo que sou contra: deficientes visuais comprarem cães-guia. Como a minha Morena lembra muito a raça labrador, esse assunto do cão-guia vem sempre à minha cabeça.

A maioria dos deficientes visuais sabe de cor o artigo 1º da Lei 11.126, de 27 de junho de 2005, que dispõe sobre o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo, públicos e privados, acompanhado de cão-guia, desde que observadas as condições impostas pela lei.

Particularmente, não entendo o porquê de os humanos sempre se utilizarem de não humanos. Não entendo. Quem pode pagar um cão-guia pode adotar outros recursos.

As principais raças de cão-guia são o Pastor Alemão, o Labrador e o Golden Retriever, mas, no Brasil, a grande maioria dos cães-guia são labradores. Ainda filhote, por volta dos dois meses, o cãozinho começa o processo de socialização com famílias voluntárias, que irão ensiná-lo a conviver com outros seres humanos. Depois, o treinamento é feito por um adestrador especialista que ensinará comandos específicos, como desviar de obstáculos e esperar o momento certo para atravessar a rua. Não é correto, não é justo se treinar bebês, seja para o que for! Bebês devem ser acolhidos, protegidos e amados. Mas, quero deixar bem claro que é a minha modesta opinião.

Para quem não concorda comigo, informo que existe uma organização sem fins lucrativos, o Instituto Iris (foto acima), que é o pioneiro ou um dos pioneiros no Brasil na difusão do cão-guia como facilitador do processo de inclusão da pessoa com deficiência visual.

Sabemos que há trabalhos desenvolvidos por cães em todo o mundo para ajudar pessoas com algum tipo de deficiência. São treinados para abrir portas, pegar coisas no chão, acompanhar pessoas com epilepsia, avisar ao tutor sobre o toque da campainha ou do telefone. Mas, penso que, para isso, não precisam ser treinados. É da natureza deles ajudar, ser companhia.

Como disse, esse assunto veio à baila porque Morena lembra um labrador e, às vezes, penso quantos foram retirados cedo de suas mães para serem treinados a servir os humanos. Mas, sem trocadilhos, é uma outra visão da questão, porque a maioria aceita e utiliza o cão-guia como companhia de um deficiente visual.

Para finalizar o bate-papo, quando a senhora se levantou e me disse que ainda teria de fritar muitos salgados, lhe perguntei: agora a senhora entende o olhar da Morena para mim?

Na língua inglesa, dizemos que vestimos um perfume. Como amante de aromas, acho esse verbo bem apropriado. Vestimos uma roupa, um calçado, um perfume. E nós, protetores de animais, não só abraçamos como vestimos também a causa animal. Com certeza.


AMIRAH SHARIF é jornalista, advogada, protetora dos animais e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. asharif@bol.com.br