Por João Batista Damasceno –
Ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo disse em entrevista que não se arrepende de ter assinado, junto com a ex-presidenta Dilma, a lei que prevê o uso de delações premiadas.
Ele afirma se arrepender, no entanto, de não ter pensado em uma regulação para o uso desse mecanismo. “Eu não me arrependi de ter implementado a delação premiada. Me arrependi de não ter regulado melhor isso. Nunca imaginei que pessoas iam ser presas para delatar, sem base nenhuma para a prisão”, disse.
A colaboração de participante de um grupo ou organização para a prisão dos demais não é nova no Direito brasileiro. Um caso clássico foi o de Joaquim Silvério dos Reis que delatou Tiradentes e recebeu recompensas por isto. O herói da Independência do Brasil, que pretendia que não fossem as nossas riquezas levadas para o exterior, também foi vítima de uma delação premiada.
A palavra do delator não pode ser considerada prova, uma vez que interessado na recompensa e na isenção de pena. Para tanto, pode fazer acusações indevidas. Assim, o delator deve provar o que diz para receber benefício e para que outrem seja incriminado.
O ex-ministro Cardozo disse que “o que acabou acontecendo é que as pessoas delatavam (…) para poder sair da cadeia” e disse também que parte das delações premiadas foi induzida e que foi “ingênuo” ao imaginar que o mecanismo seria aplicado com comedimento.
“Me arrependo talvez de ser ingênuo e não achar que usariam de forma arbitrária a delação para prender pessoas para forçá-las a delatar e pisotear sobre garantias constitucionais”, afirmou.
Não se tratou de ingenuidade. Mas, de concepção punitiva, desconsideração de que o chicote tem duas pontas, bem como desconhecimento do funcionamento institucional no Brasil fundado na nossa formação social. Uma destas razões já seria suficiente para preocupação, num ocupante de cargo tão relevante. As três associadas somente poderiam resultar em desastre institucional, com risco para a democracia, o Estado de Direito e os fundamentos da República que estamos tentando construir.
O chicote costuma ser considerado brando por quem está do lado do cabo. O ex-ministro não imaginava que outro poderia segurá-lo. E não faltou avisos. Participando do debate sobre a lei antiterrorismo, cujo projeto também foi do ex-ministro, publicamos em abril de 2015, nesta coluna, artigo analisando-o. O crime de terrorismo descrito no projeto poderia encarcerar qualquer um considerado risco à estabilidade institucional.
Descrevia como terrorista a prática de ato que fosse interpretado como perigo à vida alheia, à integridade corporal ou à liberdade de locomoção. Bastava ser considerado potencial causador de risco! E, considerava organização terrorista qualquer grupo de duas ou mais pessoas que pudesse ‘prejudicar a tranquilidade ou a ordem pública’. Trabalhadores em suas manifestações poderiam ser considerados terroristas.
É preciso estudar o Brasil e os valores que permeiam suas relações sociais. O punitivismo exemplar nem sempre se destina ao malfeitor. Mas, é aplicado aos vulneráveis para lembrar aos demais o quanto o poder pode ser perverso. E todos podem ficar vulneráveis em algum momento. Daí a necessidade de reforçar os valores constitucionais, para garantia dos direitos fundamentais de toda pessoa humana, impondo limites à atuação estatal a fim de impedir o arbítrio.
As instituições existem para conter as paixões, notadamente as punitivas. Não é adequado pensar que tais instituições funcionam por si sós, como um maquinário. Elas são geridas por pessoas e são o que delas se fazem na prática. Daí é que todo poder deve ser dividido e controlado, sob pena de abusos. E para o controle recíproco é que existe a separação dos poderes harmônicos e independentes: harmônicos quando cada qual exercita as funções que lhe foram atribuídas pela Constituição e independentes, porque é desnecessária a autorização dos outros para seu funcionamento. Do equilíbrio dos poderes é que resulta a moderação. Nenhum órgão da administração pública, civil ou militar, é poder da República, mas a eles subordinados.
Desta compreensão e prática é que resulta o Estado Democrático e de Direito.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia. (Fonte: O Dia)
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