Por Sebastião Nery –
O major Sanches Osório, da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) e ministro da Comunicação Social do Governo Provisório do general Spínola, em 1974, em Portugal, conta em seu livro “O Equivoco do 25 de Abril” que foi ao gabinete militar da Presidência, onde estavam os generais Galvão de Melo, Silvério Marques, Diogo Neto, Pereira de Melo, vários coronéis, tenentes coronéis e majores.
Convocaram o primeiro-ministro coronel Vasco Gonçalves, que entrou no gabinete e estendeu a mão ao general Galvão de Melo:
– Como está, meu general?
O general ficou imóvel.
– O meu general não me aperta a mão?
– Não, eu não falo a filhos da puta.
– O meu general é um estupor.
O general Diogo Neto interpôs-se entre os dois e disse a Gonçalves:
– Tu és uma vergonha, meu comunista ordinário, que queres levar o país para uma guerra civil. Se abres a boca, parto-te a cara.
O ministro Sanches Osório disse ao primeiro ministro:
– O governo incitou os partidos, o que é desonesto.
– Isto é uma calúnia. O senhor está a insultar-me.
– Não estou. São os fatos tais como se passaram.
O general Diogo Neto virou-se para o primeiro-ministro:
– És um merda.
O general Silvério Marques acrescentou: – Olha-me de frente. Tenho quatro estrelas, mas só duas são da Revolução. Deixo-as aqui, atiro-as à tua cara. Tu vais dar ordem ao teu partido, ao PC, para acabar com a rebelião.
Chegou o Presidente, general Spínola, que ainda viu parte da cena. Era no Palácio de Belém, em 27 de setembro de 1974.
Portugal estava vivendo a metáfora do cão da Alsácia. O menino tinha um cão. Um lindo lobo da Alsácia. A mãe não gostava do cão. O pai gostava. O pai estava em casa, o cão ficava solto, alegre, guardando o jardim. E o menino feliz. O pai viajava, a mãe prendia o cão. O cão ficava amarrado, triste, dormindo no seu canto. O menino, infeliz. Quando o pai voltava, soltava o cão. O cão saia desesperado de seu canto, corria para o jardim e comia todos os cravos dos canteiros. De raiva.
O menino e o cão desta história eram portugueses. Os cravos desta história eram portugueses. Esta era uma história portuguesa. Eu a ouvi de amigos em Lisboa, numa noite de amargas lembranças antifascistas. E nunca mais consegui pensar em Portugal sem lembrar o lobo da Alsácia.
Portugal passou cinquenta anos preso, amarrado, triste, dormindo no seu canto. Infeliz. De repente, soltaram-no. Saiu desesperado para o jardim da liberdade. O perigo é que passasse a comer os canteiros dos cravos vermelhos. De ódio. Foram três gerações espezinhadas, mutiladas. O 25 de Abril de 1974 foi a revolução francesa deles, com 200 anos de atraso, em nome da liberdade, da igualdade, da fraternidade. Foi um Maio de 68 que deu certo. Jovem, explosivo, incontido, anárquico. Quase desesperado.
Portugal foi salvo, literalmente, pela Constituinte de 75. O Partido Socialista Português, do rotundo estadista Mario Soares, ganhou brilhantemente as eleições, construiu um governo democrático de respeitabilidade internacional e deu a paz a Portugal.
Da janela do hotel Fênix em Lisboa, eu via o Marques de Pombal, elegante e orgulhoso, a cabeleira encaracolada, o olhar aberto, soberbamente de pé no meio da praça, contemplando em pedra a cidade-monumento que ressuscitou da poeira do terremoto. No fim, perdeu a guerra contra os jesuítas. Portugal tinha continuado um país de jesuítas. O país das palavras, das fórmulas, tocando nas fórmulas e nas palavras para não tocar nas coisas.
Você ia a Trás-os-Montes e encontrava aldeias medievais. Entraram séculos, saíram séculos, e Portugal pouco avançara do sistema feudal. Descobriu mundos, pulou oceanos e inventou um jesuitismo só dele, que muito explica o antes e o depois do 25 de Abril: o capitalismo escritural.
Era tudo papel, letra, número. Tudo escrituração. Fábricas feitas sem um tostão. Na escrita. Negócios de bilhões feitos sem um tostão. Na escrita. Setenta por cento da economia nacional eram controlados por sete grupos. Na escrita. Daí terem também descoberto, eles, os banqueiros jesuítas, o que nem Hitler, nem Mussolini jamais sonharam: o fascismo do crédito.
Se o crédito nascia, vivia e morria na escrita, o crédito era só deles. Como capitalismo é dinheiro, e portanto crédito, o satânico silogismo estava amarrado: deles eram a economia, o governo, o Estado, o país.
Nós, netos de Portugal, como eu, fiquemos tranquilos. Portugal saiu dessa crise, como saiu em 1975. E com a mesma arma: a Democracia.
SEBASTIÃO NERY – Jornalista, escritor, conferencista e o principal autor sobre o Folclore Político brasileiro. Professor de Latim e Português, atuou nos principais órgãos de imprensa do Brasil. Trabalhou em jornais, rádios e televisões de Belo Horizonte, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Fundou e dirigiu jornais em Minas Gerais “A Onda”, Bahia “Jornal da Semana”, São Paulo “Dia Um” e Rio de Janeiro “Politika”. Correspondente internacional de jornais e revistas em Moscou, Praga e Varsóvia entre 1957 e 58; “Isto É” e diversos jornais em Portugal entre 1975 e 76, e na Espanha em 77; adido cultural do Brasil em Roma entre 1990 e 91, e em Paris entre 1992 e 93; foi deputado federal pelo Rio de Janeiro e Bahia, e vereador em Belo Horizonte. Atualmente escreve uma coluna publicada em jornais de 20 estados.
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