Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva para a Tribuna da Imprensa Livre, Rodolfo Coelho de Souza afirmou: “Minha formação de engenheiro é impossível de separar daquilo que me tornei, mesmo quando escrevo música. A consciência da importância da estrutura é algo que exercitei tanto na engenharia quanto na composição. O hábito de pensar sobre como se pensa, tarefa essencial para o projeto de um algoritmo, é uma competência que exercitei tanto no cálculo estrutural de prédios quanto na composição computacional.” Para o compositor:
“Num país com tantos e tão graves problemas, por exemplo de educação básica e saúde, reclamar de apoio público para a música contemporânea é demonstrar insensibilidade social e egocentrismo. O artista pode e deve construir seu espaço em conjunção com o coletivo, sem esperar benesses.”
Luiz Carlo Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?
Rodolfo Coelho de Souza: No que se refere ao meu trabalho, é apropriado usar o termo
Música Erudita, acrescentando ainda, Contemporânea. Minha música descende da
tradição clássica, mas apenas naquilo em que ela foi experimental em sua época. Não
faço cópias inertes de modelos clássicos, mas também não me envergonho de revelar o
peso do conhecimento erudito da minha formação. Afinal sou um professor titular de
teoria e composição musical de uma universidade importante. Seria falsa modéstia dizer que minha música não almeja demonstrar erudição. Quanto ao termo música de concerto, ele é limitante. Minha música pode eventualmente ser influenciada pelo popular, pelo rock, pelo cinema, e é veiculada de outras maneiras além do concerto tradicional. A música erudita contemporânea circula muito mais por gravações do que em rituais de concertos. Além do mais, soube que o rótulo Música de Concerto está sendo sequestrado por reacionários terraplanistas. Quero distância dessa gente.
Enfim, se nenhum desses rótulos é satisfatório, Música, simplesmente, deveria bastar.
Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?
Rodolfo Coelho de Souza: Música Eletroacústica é o melhor termo, porque é mais
abrangente. Implica simplesmente que houve a contribuição de algum aparelho
eletrônico na composição. Aliás em quase toda música que ouvimos hoje há alguma
participação de dispositivo eletrônico: um microfone, um alto-falante, um gravador, um
computador. Então é preciso cuidado para não se cair no outro extremo, de que tudo
seria música eletroacústica. Lembro ademais que Música Eletrônica e Música
Acusmática delimitam escolas de composição específicas, ou gêneros específicos que
podem estar sob o guarda-chuva do termo eletroacústico. Isso acontece com minha
música, que às vezes é eletrônica, às vezes é acusmática, às vezes é mista (porque
frequentemente uso instrumentos ao vivo junto com sons eletroacústicos) e às vezes é
música computacional, feita por algoritmos, o que seria um outro subgênero ainda. Não
obstante essas questões de terminologia não me importam muito, pois não defendo
uma postura de purismo sectário. Uso o que estiver à mão.
O tipo de cultura brasileira, a que pertenço convictamente, é a cultura da mistura.
Prestes Filho: Desde a apresentação do “Concerto para Computador e Orquestra”, o quanto avançamos no Brasil na combinação – orquestra sinfônica e ciência da computação? Qual é o potencial do solista virtual e do solista virtuoso?
Rodolfo Coelho de Souza: Já se passaram 21 anos desde a estreia dessa obra e ela
continua despertando curiosidade. Embora tenha pensado mais de uma vez em compor
um segundo concerto do gênero, acabei desistindo. Há certas ideias que podem ser
marcantes na primeira vez mas perdem sua força se repetidas. O melhor exemplo seria:
por que escrever uma peça semelhante ao 4’33” de Cage? Não haveria sentido em um
3’44” ou em um 5’22”. É preciso esclarecer que nesta obra, o computador funciona
como um “não solista”. A virtuosidade do concertista depende da visibilidade do gesto
humano. Quando a programação traz um Concerto para piano, a plateia do lado
esquerdo fica lotada porque todos querem ver as mãos do pianista. O Concerto sempre
teve um aspecto circense, o artista na corda bamba, a virtuosidade como desafio ao
limite do controle motor humano. Quando o computador ocupa a posição do solista no
palco, esse efeito de mágica ilusão da virtuosidade supra-humana desaparece. Ainda
mais: sabemos de antemão como é a sonoridade de um violino ou de um piano, os mais habituais solistas com orquestra. O computador não tem um timbre característico. Um computador pode imitar um instrumento acústico ou pode sintetizar um som artificial. Escrever o Concerto para Computador foi tirar partido dessa ambiguidade. A peça alterna momentos em que o som do computador se funde com a orquestra, com outros em que emerge dela como algo inesperado, inaudito. Esse problema da cognição da fonte sonora foi teorizado por Pierre Schaeffer nos anos 1960 e tornou-se um problema clássico da música eletroacústica. Aliás, note-se que nesta proposta se combinam princípios do que é clássico, erudito e experimental.
Outro aspecto relevante da obra é que quando busquei a imitação de timbres existentes foi para trazer para o espaço sinfônico (uma palavra que significa “todos os sons”), sonoridades marcantes da cultura brasileira que estão ausentes da orquestra convencional: o berimbau, diversas percussões, a kalimba, etc. É também a isso que me refiro quando falo em mistura. Escrevi num artigo para uma revista de Cambridge que essa obra almejou a superação da cisão entre compositores “nacionais” e “vanguardistas” e paradoxalmente através de um computador. Se não repeti a receita do Concerto para Computador, isso não significa que abdiquei da pesquisa em música computacional. Pelo contrário, ela só se expandiu desde então, em diversos projetos. Cito, por exemplo, O Livro dos Sons para orquestra sinfônica, obra encomendada pela OSESP para a abertura de um Festival de Inverno de Campos de Jordão, na qual o computador aparece agora integrado à orquestra, não em oposição, como no Concerto.
Prestes Filho: Cite os nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores que você acompanha hoje no Brasil e no mundo que realizam a combinação de sons eletrônicos com sons instrumentais. Também, algumas obras que tem para você importância estruturante na sua formação.
Rodolfo Coelho de Souza: Meu primeiro professor de composição foi Olivier Toni,
fundador do Departamento de Música da USP. Mas com ele tive aulas particulares,
quando era adolescente, e o departamento ainda não existia. Desde o início, fiel à escola
Koellreutter, ele me direcionou à música de invenção. Com Koellreutter tive uma breve
interação num curso coletivo da Pró-Arte em que ensinou técnicas instrumentais
estendidas. Um professor realmente marcante foi Claudio Santoro. Frequentei as aulas
de orquestração e composição dele na UNB. Ele foi muito generoso, estimulou que eu
publicasse minhas peças e regeu a estreia das Variações sobre um Tema de Cláudio
Santoro que foi minha primeira obra orquestral, em técnica neo-serialista, que foi
tocada por muitas orquestras brasileiras. Posteriormente foi determinante para a
consolidação de meu estilo pessoal meu contato com Gilberto Mendes, no Festival
Música Nova. Quando fui fazer o doutorado em composição nos Estados Unidos, por
indicação de Jon Appleton, inventor do Synclavier, de quem me tornara amigo, fui
orientado por Russell Pinkston que havia feito mestrado com ele. Meu interesse por
música mista de instrumentos com eletrônica é anterior, começa em 1977 quando
recebi da Secretaria de Cultura de SP a encomenda de Durações, estreada pela famosa
Camerata Benda. Pinkston havia estudado com Mario Davidovsky, um argentino
radicado em New York, que escreveu obras fundamentais para a música mista. Participei
de alguns master-classes de Davidovsky. Embora haja outras contribuições (Conrado
Silva, Michel Phillipot) acho que esta narrativa delimita suficientemente a genealogia da
minha formação. Quanto aos compositores cuja produção acompanho, há uma
curiosa coincidência de três nomes que, como eu, também nasceram em 1952. O mais
próximo é o do francês Philippe Manoury, que trabalhou no Brasil na década de 1970, e
cujas peças feitas no IRCAM, no gênero misto, são antológicas. Outra é a finlandesa Kaija
Saariaho que combina técnica, invenção e sensibilidade de modo exemplar. O terceiro
é Wolfgang Rihm, um caudaloso alemão que sempre me surpreende. Quanto a obras
que foram (e ainda são) referências marcantes para mim, a lista é enorme. No dia de
hoje eu escolheria: Kontakte de Stockhausen, os Estudos para pianola de Conlon
Nancarrow, De Staat de Louis Andriessen, Dream/Window de Takemitsu, Répons de
Pierre Boulez, Koyaanisqatsi de Philip Glass e não poderia deixar de mencionar os
Synchronisms de Mario Davidovsky.
Prestes Filho: Quais movimentos de Música Contemporânea você acompanha de perto? Como professor, você afirmaria que nas faculdades de música e conservatórios a música contemporânea já ocupa o espaço que deveria ocupar?
Rodolfo Coelho de Souza: Neste momento acompanho com muito interesse os
compositores que estão trabalhando com competência no gênero da vídeo-música,
como é o caso do português João Pedro de Oliveira. A ópera contemporânea também
me interessa muito. Já mencionei Manoury e Saariaho acima, que escreveram óperas
maravilhosas, mas há muitos outros, como John Adams, Pascal Dusapin e Thomas Adès.
Quanto ao ensino de música contemporânea no Brasil é difícil generalizar uma
avaliação, mas tendo a achar que sim, há bastante música contemporânea sendo feita,
especialmente nas universidades brasileiras. Obviamente, não é uma produção cultural
que tenha impacto de massa, mas em época nenhuma a música de invenção tinha
alcance generalizado.
O vetor é na direção oposta: a música absorve, expressa e questiona os problemas da sociedade a que é contemporânea.
Prestes Filho: Na obra “Tristes Trópicos” você faz a sua leitura de um Brasil que não existe mais. Leva o ouvinte para a sua leitura sonora da viagem do etnógrafo Claude Lévi-Strauss, na década de 1950, onde ele descreve suas impressões da Serra do Mar. Hoje o etnógrafo ouviria outros sons?
Rodolfo Coelho de Souza: Talvez esta seja a minha obra mais conhecida, mas apenas
parcialmente pelo primeiro movimento que tem uma versão para piano que foi estreada
por Caio Pagano no Arizona. A obra completa é uma suíte orquestral em quatro
movimentos, instrumentada a partir de reduções para piano e computador. Ravel
costumava fazer desse jeito, mas sem o computador obviamente. É um projeto meio
faraônico que me tomou dois anos ou mais de trabalho. Foi nos anos do governo Collor.
No Brasil havia uma tremenda confusão, a que o título da obra indiretamente faz alusão.
Eu tive a sorte de ganhar uma bolsa internacional da Fundação Vitae que me permitiu
atravessar incólume esse período. A versão eletrônica com instrumentos me propiciou
uma turnê de concertos em dez universidades do Canadá e Estados Unidos, antes
mesmo de entrar na pós-graduação em música. Da versão orquestral, a OSESP tocou o
último movimento, com meu professor Olivier Toni regendo. Os demais nunca foram
executados. Logo em seguida fui fazer o doutorado no exterior, novos projetos surgiram
e deixei este esquecido na gaveta, mesmo porque a versão de câmera já havia tido muita
visibilidade. A suíte refaz imaginariamente o trajeto de Lévi-Strauss, começando pela
chegada no porto de Santos e a travessia da Serra do Mar, segue-se o impacto urbano
de São Paulo (representado no movimento Metrópolis, bastante conhecido na versão
eletrônica), a descoberta dos índios no Xingu e finalmente a exuberância da floresta
amazônica. Respondendo à sua pergunta sobre o que o etnólogo ouviria hoje, creio que
seria o grito sufocado dos mortos que se empilham de norte a sul do país, com a
epidemia potencializada pelo desgoverno atual. Eu não me atreveria a tentar
representar essa tragédia. Não vivi os eventos da narrativa de Lévi-Strauss.
Por isso pude fazer uma leitura do livro com certo distanciamento, como se fosse ficção, ainda que impactado por ela. Na atual circunstância seria impossível.
Prestes Filho: Quais seriam as fases mais importantes de sua trajetória de compositor? O quanto a sua formação em engenheiro civil colaborou para com a elaboração do cálculo estrutural de sua obra?
Rodolfo Coelho de Souza: Nos anos 70, alinhava-me com a vanguarda paulista,
praticando um atonalismo livre, eventualmente serialista, com experimentações de
técnicas expandidas, e no meu caso com a geração algorítmica e a eletroacústica
analógica. Nos anos 80 passei a rejeitar o postulado da emancipação da dissonância, que
na verdade significava a interdição da consonância. Houve certamente uma influência
dos minimalistas, americanos e europeus, que predominou até meados dos anos 90. A
partir dali o interesse pela composição com auxílio de computadores, um envolvimento
muito maior com a eletroacústica e uma ampliação considerável do conhecimento das
teorias da música, orientaram minha produção para um estilo… não sei a palavra…
eclético? sintético? misturado? um não-estilo? Minha formação de engenheiro é
impossível de separar daquilo que me tornei, mesmo quando escrevo música. A
consciência da importância da estrutura é algo que exercitei tanto na engenharia quanto
na composição. O hábito de pensar sobre como se pensa, tarefa essencial para o projeto
de um algoritmo, é uma competência que exercitei tanto no cálculo estrutural de
prédios quanto na composição computacional.
Apesar de parecer estranho para o leigo, essa sinergia não é rara. Os antigos consideravam a música como uma área da matemática. Acho que sou “das antigas”.
Prestes Filho: No seu “Bestiário” você aproxima o ouvinte da sua visão da idade média, inclusive trazendo conceitos relacionados com “monstros e monstrengos do Brasil”. Seria uma interpretação dos mistérios das nossas origens? O desenho que ilustra uma das obras nos remete para o século XIII.
Rodolfo Coelho de Souza: Trata-se de um ciclo de peças para instrumentos e sons
eletrônicos que replica de algum modo os Sincronismos de Davidovsky. Eles foram a
fundação deste gênero, com a diferença de que incorporei referências extramusicais.
Não quis ir tão longe quanto à Idade Média. Meus monstrinhos são os animais da nossa
fauna, vistos pelos olhos dos colonizadores europeus nos séculos XVI a XVIII. Então é
isso mesmo, uma interpretação de mistérios de origem, mas localizados na cultura, na
assimilação das influências de uma visão de mundo que distorce e/ou elucida nosso
olhar. Não tenho a pretensão de mudar o mundo compondo música. Mas elas fazem
parte da minha reflexão sobre de onde venho e para onde vou. Se servirão de alguma
coisa para alguém, não depende de mim. Isso faz parte do mistério, e não diria de um
ministério.
Prestes Filho: O seu poema sinfônico “Galáxias”, obra para orquestra e piano, é baseado no livro de Haroldo de Campos. Na obra “Livro dos Sons” você demonstra que uma orquestra é um livro de sons. Sua poética tem relação profunda com a leitura. Poderia apresentar suas referências bibliográficas, inclusive apresentar algumas das suas preocupações teóricas? A sua invejável produção acadêmica está reunida em um só livro?
Rodolfo Coelho de Souza: Essa pergunta me chama a atenção para um elemento
biográfico do qual eu mesmo não tinha muita consciência. Cresci mergulhado em uma
biblioteca. Meu pai foi professor de direito e tinha uma cultura humanística invejável.
Eu tive à minha disposição, em casa, além da extensa bibliografia jurídica que nunca me
atraiu, centenas de volumes de literatura e ciências humanas. Desde muito jovem li com
voracidade insaciável os clássicos brasileiros, portugueses, franceses, ingleses,
americanos, russos, e outros tantos (traduzidos, quase sempre, mas em algumas
exceções, no original). Em colégio jesuíta aprendi latim, francês, inglês e muita
matemática. Por isso a literatura funciona como inspiração, instintivamente, coexistindo
com a lógica dos números. Quando você pergunta sobre referências bibliográficas e
teóricas fico tentado a entrar no meu terreno específico e contar sobre as teorias de
significação musical, as teorias de conjuntos musicais, da intertextualidade, enfim… Só
enfadaria seus leitores pavoneando minha sabedoria acadêmica. Enfatizaria, ainda
assim, um aspecto do que tenho trabalhado conceitualmente.
Quando me iniciei na composição parecia um consenso que a música era uma linguagem não-semântica, incapaz de transmitir significações.
Trabalhei sempre na contracorrente daquela corrente, que era chamada de estruturalista. Para quem se reconheceu acima como um estruturalista, isso soa incoerente, ou no mínimo paradoxal. Todavia não há contradição. São coisas que existem em planos distintos, complementares. Uma Terceira Sinfonia de Beethoven é um discurso primoroso de estruturas sintáticas tonais, elaboração de motivos e forma musical. Esse plano pode ser equacionado com teorias formalistas e observações quantificáveis. Ao mesmo tempo, no plano da cultura, ela representa, entre outras dezenas de sentidos, o apogeu da significação musical do heroico. Não há contradição. Para existir, um plano depende do outro. Quanto à minha produção acadêmica, que você reputa invejável – agradeço lisonjeado – ela está dispersa em artigos, capítulos de livros e escritos jornalísticos. Um desalentado livrinho publicado em 1983 teve o modesto propósito de dar alguma visibilidade à minha produção musical até ali e postular uma plataforma teórica sobre a qual pretendi construir a sequência da minha carreira.
Reli aquele texto recentemente. Surpreendi-me como fui fiel a mim mesmo. Quanto a outros livros, tenho planos. Quero reunir meus escritos e novos textos em alguns novos volumes: sobre Significação Musical, sobre a obra de Alberto Nepomuceno (talvez meu alter ego)… mas quiçá todos esses planos sejam apenas devaneios.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Rodolfo Coelho de Souza: Nunca me preocupei com esse problema. Num país com
tantos e tão graves problemas, por exemplo de educação básica e saúde, reclamar de
apoio público para a música contemporânea é demonstrar insensibilidade social e
egocentrismo. O artista pode e deve construir seu espaço em conjunção com o coletivo,
sem esperar benesses. Durante 13 anos colaborei na direção do Festival Música Nova
de Santos e São Paulo. Buscávamos apoio estatal e privado, fazíamos muito, com pouco.
Entrei para a Universidade e me considero privilegiado. Mantenho o mesmo ideal da
época heroica do Festival, e pago meu tributo repassando para os alunos o
conhecimento que a sociedade me propiciou acumular, o que em si mesmo foi um
enorme privilégio.
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira? Você entende que o compositor deve participar de associações e de sindicatos para encaminhar reivindicações sociais e participar ativamente das lutas populares?
Rodolfo Coelho de Souza: Minha formação se fez no contexto da Teologia da Libertação
de um colégio de jesuítas. Ela incutiu em mim ideais profundamente marcantes. Não
obstante, creio que nunca cheguei a ser um ativista de causas sociais. Sou filiado ao
sindicato de professores, mas isso é lutar em causa própria. Pertenci aos quadros
culturais do MDB na época em que ele representava a oposição à Arena, o partido de
sustentação da ditadura. Fui conduzido ao Dops para explicar um programa de música
cubana no Festival Música Nova. Foi um engano, não era música cubana, era alemã, com
um enredo que se passava na Cuba do século XIX. Para demonstrar meu inconformismo
com aquela tentativa de censura, poucos anos depois trouxe de Cuba para a Bienal de
Artes, um compositor chamado Juan Blanco, o pioneiro da música eletroacústica de
Cuba que havia sido combatente em Sierra Maestra. Mas daquela vez não houve
tentativa de intimidação.
O Festival Música Nova foi, na medida do seu limitado alcance, um espaço para expormos nossos ideais e atribuir alguma relevância social para uma manifestação aparentemente elitista, como a música contemporânea. Mas essa época acabou, o modelo esgotou-se. Quanto à ABM, é uma instituição respeitável, faz sua parte. Tenho obras editadas por ela. Às vezes nos queixamos de barriga cheia. Fiz meu doutorado nos Estados Unidos, graças a uma bolsa do CNPq. Quando cheguei me convidaram a dar uma palestra aos alunos e ao corpo docente. Não foi uma consideração pessoal, lá isso é habitual. Mostrei três obras orquestrais. Ingenuamente despertei a ira de alguns presentes porque eles sabiam que passariam a vida sem ter a chance de fazer executar uma única composição para orquestra. Ou seja, nossas instituições podem funcionar bem, eventualmente melhor até do que as de países que invejamos. Nos EUA, por exemplo, não existe nada equivalente à ABM.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais tem intimidade com sua obra?
Rodolfo Coelho de Souza: Tive obras executadas por inúmeras orquestras brasileiras,
perdi a conta. A verdade é que compositores admiram todas que executam suas obras
(cabe aqui um sorriso maroto). Alguns maestros, de gerações mais velhas, foram muito
generosos comigo. Tive a honra de ter Cláudio Santoro regendo a estreia de uma obra,
Eleazar de Carvalho executando minha Carnavalia com diversas orquestras que regia,
John Boudler fazendo estreias importantes, com a Osesp, e mais recentemente também
Carlos Kalmar. Jamil Maluf foi meu parceiro em muitos projetos – e aqui cabe um
parêntese, você perguntou sobre admiração: tenho grande consideração pela Orquestra
Experimental de Repertório, pela sua proposta educacional e artística. Temo que a lista
possa ir longe demais. Luis Gustavo Petri regeu inesquecivelmente a OSB, Günther
Neuhold a Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, Emiliano Patarra a Orquestra Sinfônica
de Santos, e não posso deixar de mencionar o saudoso Silvio Barbato, precocemente
falecido num acidente aéreo, meu colega no curso com Santoro na UNB, que regeu a
estreia de Galáxias com a Orquestra do Teatro Nacional de Brasília.
Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?
Rodolfo Coelho de Souza: Na época em que produzi o Festival Música Nova – já se vão
décadas agora – acompanhava, por interesse e dever de ofício, o que compunham os
compositores brasileiros atuantes na época, e colaborava para abrir espaços para eles.
Hoje, na Universidade, tenho menos oportunidade para isso. Há alguns anos participei de uma seleção de obras da Bienal de Música do Rio de Janeiro. Muitos dos nomes selecionados foram novos para mim. É uma decorrência natural da proliferação de cursos de composição pelo Brasil afora. Então certamente há um surgimento de novas gerações de compositores talentosos, e entre eles alguns ex-alunos. Citaria três, sendo injusto com os que deixarei de fora: João Svidzinsky, que começou estudando comigo no Paraná, foi meu aluno na USP de Ribeirão Preto, fez pós-graduação na França e hoje é professor e compositor pesquisador na Sorbonne; Felipe Ribeiro, que foi meu aluno na UFPR, fez pós-graduação no Canadá e Estados Unidos, e hoje é professor da UNESPAR, compositor e diretor do laboratório de música eletrônica da instituição, e produtor de festivais de música contemporânea; e finalmente, o mais jovem deles, Rafael Fajiolli de Oliveira, que fez graduação e hoje faz pós-graduação comigo, que é um talento em evolução.
Perdoem-me se me limito a lamber as crias. Tenho bons motivos para ter orgulho delas.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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