Por Roberto Amaral –
Nossas forças, por assim dizer, armadas não estão preparadas para a defesa nacional. Além de desequipadas para o enfrentamento a qualquer ameaça externa digna de respeito (pois 75% dos gastos da Defesa são consumidos com salários, aposentadorias e pensões paras filhas de oficiais), suas operações dependem da supervisão do Pentágono, que as condiciona, mediante o monopólio do fornecimento de armas e munições (sempre de segunda linha ou obsoletas), e as controla do ponto de vista político-ideológico, sempre na contramão de nossas necessidades.
A carência, porém, se transforma em potência, quando se trata da defesa do statu quo.
No Império, os militares se fizeram fiadores da ordem escravocrata herdada da Colônia; na Primeira República atuaram como gendarmes do latifúndio, e é de sua responsabilidade única o massacre de Canudos, com o assassinato de milhares de camponeses famélicos que no inóspito semiárido nordestino, corridos de todos os rincões do chamado polígono das secas, simplesmente lutavam por terra para nela plantar, e com seu fruto matar a fome ancestral. Na modernidade, as forças armadas tomaram a si a segurança do capital monopolista, desapartado do interesse nacional, sócio de uma burguesia desenraizada da nação, porém presa aos pregões da City e de Wall Street. A nação não poderia prevalecer em uma história de dependência, econômica e ideológica aos impérios dominantes: Portugal, Inglaterra e EUA. Sustentáculo desse regime iníquo, as forças armadas se transformaram, na República, em instrumento de intranquilidade institucional, tantas foram suas intervenções, golpes de estado e ditaduras que promoveram, em nome de um monárquico “poder moderador” de que se dizem portadoras, para melhor exercer inaceitável curatela sobre a nação e suas opções políticas.
Para atender ora ao latifúndio, ora aos ganhos de uma burguesia apátrida, ora aos interesses da geopolítica do imperialismo, os generais, recém-chegados de seus cursos de formação nas escolas de guerra dos EUA, tomaram partido numa Guerra Fria que não nos dizia respeito e, consumida esta, continuaram atuando como braço do Pentágono. Essa devoção ideológica periodicamente reavivada explica o papel nada republicano dos fardados, interferindo desabusadamente na vida política do país. Nenhum desses eventos, que entulham a vida republicana, teve como leitmotiv o interesse nacional. Agiram sempre por procuração, a serviço da geopolítica do grande irmão do norte associado internamente ao grande capital e à alienação de uma burguesia cujos interesses jamais comungaram com os interesses do país e de seu povo.
Sem história própria por preservar, os militares desempenham o papel de abnegados servidores do sistema.
Ao tempo da Guerra Fria o mundo foi artificialmente dividido, cortado ao meio em gumes como uma laranja. Ou se era pró-americano, ou se era antiamericano, e todo antiamericano, ou nacionalista, era necessariamente um comunista: este era o discurso da dominação que a pobreza ideológica (e uma miríade de interesses) nos fez adotar e, em face dele, tomar o partido dos EUA. O mundo caminhou, veio a queda do muro de Berlim, veio e se foi a ditadura instalada em 1964, veio a debacle da URSS; no entanto, persiste o alinhamento e subserviência aos interesses de Washington, que o capitão parvo e pulha trouxe da caserna para a presidência da república. Assim, depois dos quase 13 nos de política externa ativa e altiva, nos transformamos em eleitores de cabresto dos EUA na ONU, votando com o Departamento de Estado e contra os interesses da periferia do capitalismo. Voltamos a ser aliados incondicionais dos EUA na OEA, envilecido instrumento de intervenção nas democracias latino-americanas; sem apoio em qualquer razão, hostilizamos a China, nosso principal parceiro comercial, hostilizamos os países árabes, consumidores de nossas commodities, hostilizamos a Rússia, a Venezuela e Cuba, hostilizamos a Bolívia, já hostilizámos a Argentina e brevemente estaremos hostilizando o Peru. Essa mesma lógica presidiu o golpe de Estado contra Dilma Rousseff, a consequente ascensão do governo títere de Michel Temer, e ainda garante, hoje, contra o sentimento nacional, o desastre bolsonariano e o ódio fardado a Lula e ao que o PT representa, ou o que a cúpula militar, no seu simplismo binário, supõe que representa. O preço dessa idiossincrasia potencializada por má-fé e crassa disposição à subalternidade, é a tragédia nacional de nossos dias.
Essas reflexões me ocorrem ao acompanhar o patético desfile de nossas relíquias bélicas, denotativas da importância que os EUA, nossos fornecedores de armas, equipamentos, munições e ideias dedicam ao seu aliado incondicional: um dos “tanques”, que a verve do brasileiro logo batizou de “maria fumaça”, era inofensiva peça dos anos 70 do século passado, e diz a crônica especializada que peças ainda mais velhas compunham o brancaleônico comboio. Com essa pixotada, o capitão e seus generais, almirantes e brigadeiros pretendiam acuar a câmara dos deputados, que, no outro lado da praça dos três poderes, se preparava para rejeitar a farsesca PEC do voto impresso.
O inusitado espalhou temores.
Eram, em princípio, justas aos receios dos parlamentares. Se os exercícios da marinha (pela primeira vez incorporando tropas do exército e da aeronáutica) se repetem desde 1988, jamais haviam sido precedidos do desfilo grotesco com o qual foram anunciados; se, por alegadas razões administrativas, as operações militares anunciadas para o campo de instrução de Formosa-GO estavam programadas há muito tempo, e por isso não podiam ou não deveriam ser adiadas, nada porém justificava a manutenção da parada militar na Praça dos Três Poderes engendrada como pretexto para entregar ao presidente um convite, o qual, se as intenções dos almirantes fossem sinceras, podia ser transmitido por meio de mero telefonema, ou formalizado mediante despacho de rotina, ou ainda simplesmente levado em mão ao palácio do planalto por um estafeta engalanado. Inquestionavelmente, a patuscada tinha por objeto ameaçar o processo democrático, e, nesse sentido, foi um fiasco. Serviu apenas para pôr em maior evidência as limitações de fogo de uma força sucateada, e a irresponsabilidade de seus comandantes. O desfile de nossa impotência bélica fez ainda mais flagelada a imagem das forças armadas, que, assim, revelaram ao mundo a incapacidade de cumprir com sua real destinação constitucional, a defesa da soberania nacional.
A montanha pariu um rato.
Mas, antes do fiasco, provocou mal-estar entre os poderes desarmados, ante os partidos e junto à imprensa que, desta feita, faz cara feia aos arreganhos golpistas. A crônica política, porém, não se dera conta de que a ameaça de golpe se esvaía em sua desnecessidade.
Sem precisar do acicate da espada, brandida em tantos episódios de nossa história, o congresso brasileiro vem, desde 2016, violando o pacto de que resultou a Constituição Cidadã de 1988. Agora mesmo, a câmara dos deputados volta a ceifar direitos trabalhistas mediante uma “minirreforma” que contou com o silencio da imprensa e a anomia do movimento sindical, ao aprovar medida provisória que permite a contratação de jovens sem vínculo trabalhista, sem férias, sem FGTS ou 13º salário, reduz o valor da hora extra de algumas categorias e – eis a cereja do bolo! – dificulta o combate ao trabalho escravo. Assim, prescindindo dos tanques, mas não do apoio dos fardados, avança o golpe progressivo, esse em que padecemos, “suave”, sem, ainda, lançar mão, porque presentemente desnecessário, da ruptura da ordem jurídico-legal-formal, mas valendo-se de reformas constitucionais levadas a cabo a toque de caixa por um congresso sem legitimidade constituinte. Não se conclua, porém, que o capitão e seus áulicos fardados tenham arquivado os intentos desestabilizadores, que mais se exacerbarão na medida em que ficar ainda mais claro o fim das esperanças de reeleição (e dela decorrente da impunidade penal) com a qual o mau capitão sonha desde que tomou posse.
Bolsonaro jamais se interessou por voto impresso; seu pleito visava e visa, tão simplesmente, a uma tentativa de desestabilizar o processo eleitoral, para que possa, nos últimos estertores, mais questionar a legitimidade da eleição do próximo presidente da república. O projeto, pretendendo esconder um segredo de polichinelo, padece de qualquer originalidade, pois é a transcrição das artimanhas com as quais seu êmulo, o defenestrado presidente Trump, intentou embaralhar sua sucessão.
O golpe clássico não deu certo na matriz, e já é pólvora molhada entre nós.
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. www.ramaral.org
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