Por Lincoln Penna –
Artimanhas do imperialismo e equívocos das esquerdas.
Mais um ano se passa do primeiro de abril do golpe que tirou do povo brasileiro a possibilidade de rumar em direção à verdadeira emancipação do país. Ao evocar a grande derrota nacional e popular há de se registrar a presença nesse episódio de duas situações.
Refiro-me num primeiro plano a da hipotética “cubanização” inaugurada com a ascensão de João Goulart à presidência, argumento forjado pelos golpistas inspirados e instrumentalizados pelo departamento de Estado norte-americano; e, a da improvável reação das forças contrárias ao governo. Logo, a rejeição por parte de muitos setores governistas na ocasião e das esquerdas de que poderia haver algum retrocesso político.
Tal como hoje também se usava para fins políticos e ideológicos a democracia como um bem a ser preservado contra a “ameaça do comunismo”. O que o anticomunismo mais temia numa eventual revolução, que reproduzisse de alguma forma o que ocorrera em Cuba, era a dissolução da propriedade privada e, consequentemente, a socialização dos meios de produção, terras e propriedades privadas. Era preciso, no entanto, desviar esse foco central e lançar mão de um expediente que pudesse atemorizar os incautos cidadãos. Daí, a associação do socialismo / comunismo à ditadura.
Por outro lado, o crescimento da pauta reformista de Jango emponderava as forças de esquerda à época representadas fundamentalmente pelos comunistas e suas lideranças sindicais, além de uma intelectualidade que se manteve acesa na perspectiva da revolução brasileira. A quase certeza de que qualquer tentativa de golpe seria travado pelo exército legalista, tal como acontecera em 1955 e nos ensaios golpistas de Jacareacanga e Aragarças, em 1956 e 1959, respectivamente, fortalecia essa crença.
Se a avaliação segundo a qual o governo de Jango estaria inclinado a transformar as Reformas de Base num trampolim com vistas à implantação de um “regime comunista”, como era apregoado pelos ideólogos de Washington, não carecia de fundamentos. Era pura aleivosia para incrementar o movimento que se opunha ao governo. A mesma coisa se dava com a convicção da legalidade das Forças Armadas decantada pelas mais destacadas figuras políticas que davam suporte ao governo.
Ilusões calcadas no desconhecimento ou na pouca importância dada ao quadro internacional movido pela Guerra Fria, que desapareceriam e se tornariam mais marcantes por ocasião da rápida queda do governo inteiramente despreparado, apesar da existência de uma força-tarefa, que não se fez presente, o “dispositivo militar”, sob o comando do general Assis Brasil, para quem as tropas dos generais Mourão e Guedes vindos de Juiz de Fora em direção ao Quartel-general, no Rio nada mais eram do que exercícios rotineiros, de modo a reforçar ainda mais a ilusão que a todos alimentava, quase nove meses após a Revolução Cubana.
Os fatores ou fatos geradores que impulsionaram o golpe precisam ser mais bem explicitados. As interpretações mais comuns acabam reproduzindo avaliações que, em alguns casos ou situações, não encontram respaldo nos fatos. A necessidade de firmar posições no teatro das lutas doutrinárias e ideológicas acaba por dificultar a perspectiva da análise política.
Não existem dúvidas quanto à guinada da política externa dos EUA quando da definição dos rumos da Revolução Cubana em direção à construção de uma sociedade socialista, o que provocou impactante repercussão na política de defesa do país que desde o término da Guerra em 1945 tornara-se uma espécie de bastião do capitalismo no mundo Ocidental. Assim, os estrategistas do Pentágono e do departamento de Estado passaram a tratar a América Latina e, particularmente, o Brasil como peça fundamental no panorama da política norte-americana.
Do ponto das forças anti-imperialistas, notadamente das esquerdas representadas pelos comunistas brasileiros, a possibilidade de fazer avançar o processo da revolução brasileira com a adesão de uma suposta burguesia nacional, capaz de juntar-se a esse processo para poder gerir sem tutela os seus negócios, numa parceria de classes com um proletariado débil em termos de consciência revolucionária e ainda muito carente de organização que suplantasse às questões de natureza sindical, tornava essa perspectiva mais ilusória do que real.
A ausência de resistência por parte de um governo com base popular revelou a certeza de que o golpe era tão somente uma ameaça visando constranger as metas reformistas, desprovido esse governo de qualquer plano de sustentação em face de alguma ameaça real. E estas eram suficientemente claras durante todo o governo, tanto do período parlamentarista quanto do retorno do sistema presidencialista de Jango.
Além da ostensiva e agressiva atividade do IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática, a financiar candidatos que se opunham ao governo nas eleições de 1962, começara a operar um organismo que atendia aos interesses dos grupos que agiam com vistas à preparação do golpe. Refiro-me ao SNI – Serviço Nacional de Informações, sob a batuta do general Golbery do Couto e Silva, seu criador e articulador da geopolítica em comunhão com os estrategistas e agentes norte-americanos.
A operação golpista se fez presente em todas as áreas, não escapando até mesmo a religião. Foi enviado às vésperas do golpe, em fins do ano de 1963, o padre Payton, que logrou desempenhar um papel aglutinador nas hostes de um catolicismo ortodoxo e eivado de mensagens anticomunistas. Mobilizou-se também a imprensa e o incessante noticiário exibido repetitivamente nas salas de cinema em jornais anteriores à exibição dos filmes.
Eram documentários produzidos por outra agência de propaganda anticomunista, o IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, irmão carnal do IBAD que divulgava as matérias sensacionalistas de modo a criar um clima de medo. Voltava-se, é claro, para uma classe média já atemorizada com a possibilidade de perder o pouco que dispunha.
Assim, todas as evidências foram minimizadas, pois havia de fato uma certeza dos muitos inebriados com o entusiasmo sem tréguas de um governo trabalhista com pé na perspectiva mais avançada das conquistas sociais. Não havia como impedir, portanto, o prosseguimento de um processo que antevia para os mais combativos adeptos da revolução brasileira que parecia descortinar no horizonte próximo.
A rede da legalidade organizada e liderada pelo deputado Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul, reforçou a convicção de que os militares tinham dado uma demonstração de compromisso com as instituições políticas, quando o general Machado Lopes à frente do comando no sul do país manifestou apoio à posse de João Goulart, a despeito da evidente divisão na caserna. O próprio general Ladário Teles, então recém-nomeado comandante do terceiro exército, informara a Jango quando aportara em Porto Alegre já com o golpe em marcha, que ele não dispunha de pleno controle de seus subordinados na região.
No jogo entre as artimanhas golpistas e os equívocos dos autênticos patriotas, contingente formado por genuínos membros de comunidades que praticavam os princípios mais fundamentais das correntes que se encontravam entrelaçadas, como os trabalhistas, os socialistas e os comunistas, eixo mais consequente do governo Jango, ganharia a parada os eternos defensores das injustiças sociais. E como sempre em defesa de uma democracia de fachada.
Passados 59 anos do golpe, que fique essa advertência. Não basta a defesa da legalidade institucional. É preciso criar mecanismos que permitam sua existência e isso só será efetivamente alcançado se tivermos condições de organizar as massas populares.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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