Por Alberto Zacharias Toron e Pierpaolo Cruz Bottini –
Direito de Defesa.
Nos últimos tempos, muito tem se falado em reforma da Justiça, em morosidade, gestão e organização dos tribunais. Debate-se o regime de trabalhos de magistrados, os custos do sistema, a legislação antiquada, mas muitas vezes o essencial é deixado de lado: não é possível falar em reforma da Justiça sem discutir o sistema prisional.
De nada adianta mudar leis, sistemas recursais, ou criar instituições de defesa se mantemos 682.182[1] pessoas submetidas ao mais degradante cotidiano, à violência estatal, ao crime organizado e a um ambiente no qual a sobrevivência é um desafio, ainda mais em tempos de pandemia.
Qualificar isso como um “estado de coisas inconstitucional” — como fez o Supremo Tribunal Federal ao julgar a medida cautelar referente à situação atroz em que se encontram os presos brasileiros, que configura uma violação contínua de seus direitos fundamentais e humanos, denotando uma situação inconstitucional — é importante, mas não suficiente. É inconcebível que um Estado que se apresente como Democrático de Direito, que tenha como diretriz nuclear de sua Constituição a dignidade humana, aceite essa tragédia humana carcerária.
Há quem diga que o Brasil é o país de impunidade, que a Justiça não funciona, que impera a prescrição. Não é o que mostram os dados. Nosso país hoje é a terceira nação que mais prende pessoas no mundo, atrás apenas da China e Estados Unidos[2].
Isso indica que fizemos uma opção pelo encarceramento como política criminal e social. Washington Luís dizia, no início do século 20, que as questões sociais eram caso de polícia, e pouco mudou desde então. Seguimos usando celas e trancas como resposta à pobreza, à miséria e muitas vezes como forma de encarar os representantes de movimentos sociais que lutam contra esse estado de coisas, como revela a recente prisão de Preta, líder comunitária de um movimento de moradia.
Trata-se de uma escolha desumana, ineficaz e perigosa. Desumana porque não afasta apenas a liberdade do preso — o que já seria muito —, mas priva-o da saúde, da educação, da dignidade. Ineficaz porque há muito se sabe que a prisão não ressocializa, não reeduca, não afasta o detento do mundo do crime. Ao contrário, insere-o em um sistema cultural em que o delito é a força motriz, é o modo de vida, dentro e fora da prisão.
Von Lizst já dizia, no final do século 19, que “como são atualmente aplicadas, elas [prisões] não corrigem, não intimidam nem põem o delinquente fora do estado de prejudicar, e, pelo contrário, muitas vezes encaminham definitivamente para o crime o delinquente novel.”[3]. Não parece que esse cenário tenha sido alterado nos últimos 120 anos.
Mas, mais do que desumana, essa política do encarceramento é perigosa e pouco inteligente, porque tem por resultado o aumento da criminalidade. Trancar 682.182 pessoas em unidades prisionais, sem qualquer controle ou supervisão, resultará ou no conflito coletivo, de todos contra todos, em um contexto insuportável de violência, ou na natural organização desse coletivo, em grupos de proteção mútua, de assistência comum. Os Primeiros Comandos da Capital, Comandos Vermelhos, Amigos dos Amigos e tantos outros não nasceram do acaso. São frutos dessa escolha pelo cárcere. Cada preso é celebrado pelas ordens criminosas como mais um integrante em potencial, mais um soldado, mais um militante.
Quando presidiu o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes alertava para o fato de que as condições de encarceramento traduzem um problema de segurança pública na exata medida em que os altos índices de reincidência, mais que a tradução do fracasso da prisão, revelam uma faceta que deve ser contida.
No longínquo ano de 1975, em São Paulo, realizou-se o 5º Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins, que tratou, basicamente, de questões referentes às penas e, nesse diapasão, da reforma penitenciária. No âmbito legislativo federal, mais especificamente no da Câmara dos Deputados, entre 1975 e 1976, instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito voltada a examinar a dramática situação do sistema penitenciário. O relator dos trabalhos foi o deputado Ibrahim Abi-Ackel, depois ministro da Justiça no governo Figueiredo.
O diagnóstico dessa CPI e suas conclusões não trouxeram nenhuma novidade, isto é, constatou-se que as prisões estavam superlotadas e corrompidas, além de serem elas mesmas corrompedoras. Além disso, havia uma indevida miscigenação entre reincidentes e não reincidentes, presos perigosos e não perigosos etc.
Tais conclusões em nada diferiram de outra CPI, instalada em 2007, sob a relatoria do deputado federal Domingos Dutra. Ele citava a superlotação dos presídios, detentos presos com penas vencidas, corrupção e desorganização do sistema, domínio de facções criminosas etc.[4] Outra CPI, também realizada no âmbito da Câmara dos Deputados, relatada pelo deputado Sérgio Brito em 2015, chegou às mesmíssimas conclusões.
Assim, seja por humanidade, seja por pragmatismo, é preciso rever a política do encarceramento em massa.
Enquanto os problemas do encarceramento em massa não entram na pauta dos poderes Executivo e Legislativo, talvez pela falta de atrativos eleitorais, o Judiciário tem avançado no enfrentamento da questão. Recentes decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça têm revelado, no mínimo, o desconforto de magistrados com a situação carcerária do país.
Não por acaso, em decisão histórica relatada pelo ministro Ricardo Lewandowski, concedeu-se a ordem, em caráter coletivo, para abranger todas as mulheres presas que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças até doze anos de idade sob sua responsabilidade, e retirá-las do cárcere, exceto nos casos de crimes com violência ou grave ameaça.[5]
Com o mesmo espírito, outras decisões garantem o banho de sol a presos[6] ou o ressarcimento em razão de condições carcerárias que não respeitam os mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei[7]. No âmbito do STJ, em decisão relatada pelo ministro Reynaldo Soares, do Superior Tribunal de Justiça, determinou-se a contagem em dobro dos anos de prisão em um caso no Rio de Janeiro em que a unidade prisional era atentatória à dignidade humana[8].
Nota-se, da atitude do Judiciário, que há formas racionais e factíveis para superar a política do encarceramento em massa. É hora de percebermos que a prisão pode ser uma proposta eleitoral eficaz, um bom instrumento para aumentar a audiência de programas de televisão sensacionalistas, mas não pode fundamentar um programa de segurança pública.
Ou bem enfrentamos esse estado de coisas abominável ou continuaremos a ser participantes de uma barbárie irresponsável, e por ela seremos cobrados no futuro.
***
[1] Disponível em https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/05/17/com-322-encarcerados-a-cada-100-mil-habitantes-brasil-se-mantem-na-26a-posicao-em-ranking-dos-paises-que-mais-prendem-no-mundo.ghtml. Dados atualizados em 2021. É importante observar que o número de encarcerados diminuiu devido à pandemia de Covid-19.
[2] Idem. Também disponível em https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/6774/, https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/02/19/brasil-tem-338-encarcerados-a-cada-100-mil-habitantes-taxa-coloca-pais-na-26a-posicao-do-mundo.ghtml e https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-terceira-maior-populacao-carceraria-aprisiona-cada-vez-mais/
[3] VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira, Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899, p.113
[4] Noticiário da Câmara Federal, 22/8/2007. O relatório final pode ser encontrado na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados (www.bd.camara.gov.br).
[5] Habeas corpus nº, 143.641, julgado em 20/02/2018.
[6] Habeas corpus nº. 172.136, rel. Min. Celso de Mello, julgado em 10/10/2020.
[7] Recurso Extraordinário nº. 580.252, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/02/2017.
[8] Recurso em Habeas corpus n. 136.961, Diário da Justiça eletrônico, 30/4/2021).
Fonte: Conjur
Alberto Zacharias Toron é advogado, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca, professor de Processo Penal da FAAP, conselheiro federal da OAB eleito por São Paulo, autor do livro “Habeas corpus e o controle do devido processo legal” (ed. Revista dos Tribunais) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP e foi secretário de reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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