Por Lincoln Penna –
Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça e o vento nada me diz. (…) Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não.
(Manuel Alegre, Trova do vento que passa)
Os comunistas brasileiros celebrarão os cem anos de fundação de seu partido, em março de 2022. Escrever sobre essa efeméride implica desde já reconhecer que se trata de uma história que integra e emoldura a trajetória de uma parte combativa do povo brasileiro, quer queiram os seus detratores ou não.
A parte do povo a qual me refiro se encontra no mundo do trabalho e são os que formam a força social dos trabalhadores nas cidades e no campo. Contingente este responsável pela produção de riqueza no país, no âmbito tanto material quanto intelectual, numa sociedade ainda sob os escombros da escravidão não inteiramente superada. E essa parte significativa de brasileiros talvez nem tenha ideia do quanto os comunistas pelejaram para dar-lhes dignidade e melhores condições de vida.
Há uma tendência natural de uma historiografia que se ocupou da história da militância comunista no Brasil e no mundo em ressaltar de forma quase exclusiva o papel desempenhado pelos partidos comunistas e suas principais lideranças. É compreensível que assim se considere o instrumento através do qual agiram os seus quadros militantes. Afinal, a criação das seções nacionais da Internacional Comunista levaria a formação de partidos em cada estado.
Foi com base na organização minimamente disciplinada dos partidos comunistas que os seus militantes em todo o mundo se irmanaram e desenvolveram as suas atividades políticas e sindicais. Cunhou-se até a expressão repetida intermitentemente, segundo a qual, ser comunista é estar no partido comunista, atestado eloqüente da importância atribuída à vanguarda do proletariado. Homenagem justa aos seus devotados dirigentes.
Mas se é compatível com a história da militância comunista referir-se aos partidos comunistas, não é menos importante destacar a ação dos comunistas sem vinculação partidária, que ao lado de outros camaradas organizados ou não desenvolveram intensas e profícuas lutas em defesa dos valores e princípios do comunismo, como projeto de construção coletiva de uma sociedade sem classes.
É nessa perspectiva que me disponho a registrar essa data, sem com isso diminuir a importância da vida partidária e o próprio e necessário sentido da existência dos partidos comunistas. Creio, contudo, que assim posso revelar o lado mais palpável e efetivamente combatente de seus quadros em suas ações voluntárias.
Escrevi duas biografias de dois comunistas, uma na condição de ghost writter, a do dirigente comunista Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão; e a outra do sindicalista e deputado federal Roberto Morena. Duas personalidades especialmente distintas, mas ambas dotadas de um profundo compromisso com a classe operária e os destinos da nação brasileira, como sinceros internacionalistas que foram.
Ao percorrer a vida desses dois personagens, me dei conta de que existem individualidades que ao assumirem as tarefas da militância comunista introduzem características próprias do seu ser. E ao assim procederem, enriquecem o conjunto de seus companheiros de modo a promoverem uma espécie de troca enriquecedora para todos os membros da organização partidária.
O tão propalado “homem novo” concebido pelos ideólogos do comunismo bolchevique, ainda em seus primórdios, na leitura que faço e sempre fiz, não significa a uniformização da conduta do ser social, que seria a resultante da revolução internacionalista com vistas à implantação do comunismo. Na verdade, seria um novo ser humano determinado e voltado à construção da fraternidade universal.
Se, no entanto, as concepções desviantes levaram a distorcer essa concepção, o problema se encontra na condução errática desse projeto. Ou seja, a de depuração das taras das sociedades de classes, notadamente do capitalismo. Até porque a figura do indivíduo de posse de sua personalidade respeitada, nada tem a ver com o individualismo egoísta tão a gosto das convenções capitalistas.
Dito isso, como preâmbulo, gostaria de acrescentar algumas virtudes que tive e tenho encontrado em diversos e diferentes militantes comunistas. Creio que assim procedendo posso clarear melhor o que pretendo sustentar nessa antevéspera do centenário do mais antigo partido político em nosso país. E o faço convencido de que esses traços se encontram presentes em todos os comunistas, uns mais acentuadamente do que em outros, é claro.
Quando tomei conhecimento de que o professor José de Almeida Barreto, uma das lideranças do Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro das décadas de cinqüenta e sessenta do século passado, e então militante comunista, havia doado a parte que lhe coubera de uma herança familiar nas Alagoas aos seus irmãos, entendi tratar-se de um gesto típico de muitos comunistas autênticos que conhecera na vida.
Talvez o exemplo mais conhecido por muita gente seja o do arquiteto Oscar Niemeyer, sempre generoso quando se tratava do partido e de seus membros. A ajuda emprestada ao camarada Luiz Carlos Prestes é notória e dispensa maiores detalhamentos. Fora outros que sem alardear tornaram-se contribuintes ou amigos da organização comunista, sendo ou até não sendo um adepto do ideário comunista. Eram como acho que continuam a serem tratados os denominados simpatizantes.
Essa verdadeira rede se estendeu anos mais tarde às organizações clandestinas que optaram na época da ditadura pela luta armada. No livro de Maria Cláudia Badan Ribeiro, intitulado “Mulheres na Luta Armada. Protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional)”, a autora se refere às mulheres (e homens) que deram de alguma forma apoio às operações dos militantes dessa corrente constituída por muitos comunistas egressos do PCB, dentre eles a figura maior de Carlos Marighella.
Á solidariedade é, sem dúvida, um dos traços mais destacados dos comunistas. Não só deles é evidente, mas de pessoas abertas a ajudarem outras em situação de necessidade, qualquer que seja ela, haja vista nos exemplos minimamente destacados até aqui. Isso porque, o espírito solidário é uma forte componente da concepção comunista em seu mais profundo sentido, pois leva à comunidade de destino o afeto traduzido pela cooperação de todos entre si.
Com essa característica marcante, os comunistas ou aquelas pessoas que não sendo comunistas com eles tendem a se identificar, reconhecem o maior problema de nossa civilização movida pelo dinheiro e pela ganância do lucro. A usura e a febre da acumulação acabaram sendo a marcas indeléveis da lógica do capital sobre o trabalho, e ideologicamente tentando atrair os trabalhadores para usufruírem, mesmo em migalhas, o vil metal no lugar do companheirismo solidário.
Além da solidariedade é preciso acrescentar outra condição própria a ser reconhecida aos que professam a concepção comunista. A absoluta e intransigente defesa da justiça social. A indiferença das classes dominantes em relação à questão social é inerente a sua condição de classe a exercer o poder. Porém, a reprodução dessa atitude nas classes médias e subalternas é fruto da ação ideológica.
Sob certas situações, o poder da ideologia acaba sendo mais fulminantemente avassalador do que a própria condição econômica dos que vivem do assalariamento. Não só porque a ideologia está constantemente exultando o esforço do trabalho como condição para a prosperidade futura, numa falsidade que só é aceita pelos mais ingênuos; mas, também porque o aparelho ideológico do estado burguês capitalista age continuamente junto a massa de assalariados de modo a cooptá-los.
Assim, solidariedade e a busca incessante pela justiça social resumem o essencial. A prática dessas duas condições resulta nas atitudes comportamentais de entrega absoluta aos seus deveres de consciência, razão pela qual por vezes essa entrega retira tempo do ambiente familiar, sem, no entanto, deixar de mão as suas responsabilidades. Afinal, há uma família bem maior na qual o comunista devotado acaba se entregando, e com isso, reforçando o afeto que manifesta aos seus entes queridos. Vários são os exemplos que compartilhei para poder dizer isso.
No Brasil de hoje, como no mundo assolado pela desigualdade entre povos e classes sociais, a presença dos comunistas não é apenas uma mera representação política em meio a tantas outras. Essa presença é necessária independentemente de pleitear, como é seu direito e dever, o poder popular.
Mas, cabe aos comunistas estar atentos à preservação da humanidade em face dos males que a assolam pela ação de forças que se nutrem da miséria do povo.
Nessas primeiras décadas do século XXI tem ficado evidente a necessidade de se pensar estratégias e táticas em consonância com os tempos em que vivemos. Mas, esse repensar só será válido se estiver respaldado pela chave explicativa do marxismo. As contribuições de Lênin e de outros integrantes da rica geração de intelectuais atuantes do século XX foram e continuam a ser fontes inspiradoras. Mais pela capacidade que tiveram em apreender e interpretar os novos desafios impostos ao ideário socialista do que pela reafirmação das ideias de Marx e Engels.
A própria conformação das classes trabalhadoras apresenta por si só um novo e importante desafio, uma vez que imbricada no mundo amplificado do assalariamento a própria identidade de classe impõe nova configuração. Isto dentre tantas outras questões que em nada afastam da cena histórica as lutas de classes. Todavia, estas ganham novas dimensões e, conseqüentemente, novos desafios e novas tarefas.
Cabe aos comunistas de cada formação nacional examinar com as lentes da análise marxista essas novas realidades, com vistas à definição de formas e métodos de lutas. Essas devem estar amparadas no estudo aprofundado das contradições que movem os processos sociais ao longo da nossa história. Compreender essas realidades consiste na tarefa essencial de quem está consciente do caráter mesmo da história como a ciência do movimento. Daí estar sempre em construção, como nos alertava o grande historiador marxista francês Pierre Vilar.
Na esteira dessas considerações não há como deixar de lado a questão da revolução social, tal como Marx assim a designou. Os processos de mudanças que se aceleraram com a expansão do modo de produção capitalista em sua fase industrial aguçaram ainda mais as contradições, de modo a provocar a inevitabilidade dos confrontos de classes como Marx antevira.
A própria burguesia tinha sido protagonista das primeiras grandes transformações para adequar a sua hegemonia nos quadros dos novos tempos. Marx. Inclusive, reconheceu como tendo sido uma classe revolucionária em seu tempo, porquanto desenvolveu uma luta pela ascensão ao poder, não medindo forças e esforços para conquistá-lo.
Mas, o poder burguês engendra e aprofunda as lutas de classes, e a irrupção do movimento proletário decorre dessa situação. Assim, chegaram os tempos das revoluções sociais previstas por Marx de forma mais intensa, e com isso a ideia de revolução passaria a figurar na pauta das forças representativas do mundo do trabalho diante da nova forma de opressão, dessa vez representada pelo poder burguês.
Ensaios e experiências não bem sucedidas aconteceram até o advento da Revolução dos sovietes e bolcheviques na Rússia em 1917. Ela, como se sabe, ocorreu no contexto da Primeira Grande Guerra Mundial, uma aguda manifestação da crise sistêmica do capitalismo, que passará doravante a experimentar crises crônicas. Os rumos dessa Revolução decorrem em parte dessa situação, ou seja, de uma revolução que se esperava irradiar-se a todos os países e se tornar internacionalizada, mas que acabou contida e localizada em um só país.
A burguesia encarregou-se de isolá-la e inviabilizá-la como epicentro da tão esperada revolução social de amplitude mundial. Reforçaram-se os orçamentos destinados à guerra, principalmente em países de contenciosos de guerra passadas; além de fortalecer as políticas de apoio às classes dominantes dos países de passado colonial, integrados ao mercado das economias capitalistas, com o indefectível bloqueio ao comércio desses países com o estado soviético.
As vitórias de revoluções sociais que promoveram a assunção de regimes socialistas no século XX, como as da Rússia, da China e a de cuba, para citar as mais significativas no que diz respeito à geopolítica mundial, não lograram vencer o desafio de se tornaram partes integrantes de uma revolução mundial.
Os êxitos alcançados, porém, se de um lado demonstraram o quanto esses regimes podem representar em termos de ganhos de qualidade de vida para as suas populações em geral; têm todos eles amargado permanentes maquinações do novo imperialismo, agora em sua fase neoliberal. Esta nova faceta do estágio mais agressivo do capitalismo, ao contrário de sua versão original, dispensa o centro do seu poder em um único estado. Ele se encontra espraiado por todo o mundo.
Se a consigna de Stálin a respeito da tese do socialismo num só país, decorrente do cerco promovido pelas potências capitalistas sobre a URSS, desde a década de 1920, permanece presentemente como um dado de realidade; nada impede que se empreenda uma articulação de todos os povos com vistas a suas libertações do jugo das grandes economias que detém o domínio do mercado mundial, à custa dos esforços de todos esses povos.
Para que essa articulação ocorra é preciso que cada um compreenda que não existe um modelo pronto e acabado de mudança de regime. Torna-se por isso mesmo indispensável que cada povo defina seu futuro, e nessa tarefa os comunistas não só devem participar como sua presença é indispensável. Como é também indispensável o acervo da cultura comunista aplicada à esfera política, construída ao longo dos anos através de lutas continuadas em meio a derrotas e sofrimentos, que fizeram compreender a importância das articulações políticas visando o futuro.
Por último, mas não menos importante, aos comunistas do mundo inteiro foi despertado o alarme da sobrevivência da humanidade. O estado deplorável da devastação da fúria do lucro a qualquer preço ao agredir a natureza e suas fontes renováveis se encontra na ordem do dia.
Para combater esses crimes ambientais só uma ação coordenada de todas as forças do progresso e da preservação do meio ambiente é capaz de interromper esse crime de lesa humanidade. E de novo cabe aos comunistas assumir essa tarefa. Do contrário, não haverá clima para a construção do socialismo em qualquer parte da Terra.
Da mesma forma, é ponto de honra dos comunistas a defesa da democracia como patrimônio civilizatório, resultante de uma construção histórica. A querela entre democracia burguesa e democracia proletária apregoada por seus ideólogos tende a reduzi-la às conveniências de cada um dos lados. Na verdade, acaba por se admitir a ideia de uma democracia própria a cada classe social.
Para os comunistas brasileiros é preciso lembrar a derrota em 1964, quando o povo foi golpeado. Os golpistas empunharam a bandeira da democracia, e não soubemos à época desmascarar esse oportunismo e sustentar a legalidade como uma representação da democracia.
A democracia é incompatível com o capitalismo, já o socialismo é a própria configuração democrática capaz de levar a humanidade ao mundo verdadeiramente civilizado, sem armas e preconceitos. E isso consiste na construção de uma sociedade igualitária em condições de irmanar todos os povos e garantir as suas próprias características peculiares. Ou seja, a autonomia de suas representações culturais e espirituais.
Desse modo, referir-se à democracia socialista chega a ser um pleonasmo, de vez que o socialismo comporta organicamente a democracia. O mesmo, contudo, não acontece com o capitalismo, cuja essência está precisamente na exploração do trabalho de quem não possui os meios próprios de produção e se sujeita à venda de sua força de trabalho. Não é uma cooperação. É uma espoliação, que uns cometem sobre aqueles que são forçados a se submeterem a essa condição.
Todavia, ao tomarem consciência de que essa relação pode ser desfeita, superada, pela disposição de se libertarem desse jugo, tem início verdadeiramente os processos revolucionários. Estes não se esgotam na tomada do poder. As revoluções se fazem ao longo do tempo e às vezes de gerações, para que seus plenos objetivos sejam alcançados, e se implantem então as bases efetivas da sociedade universal. Ou, da democracia simplesmente, única em condições de ser assim chamada.
Dessa forma, aos comunistas do mundo inteiro e em especial aos comunistas e não comunistas brasileiros, o reconhecimento do legado centenário de um conjunto de mulheres e homens que abraçaram e continuam a abraçar a causa dos povos e da humanidade como parte integrante de seus seres.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Tribuna recomenda!
NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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