Por Jeferson Miola

A investigação do assassinato da Marielle finalmente deslanchou, depois de cinco anos com Temer e Bolsonaro marcados por embromações, sabotagens, eliminação de testemunhas e interferências políticas para encobrir a verdade sobre o crime.

Este avanço desde que a PF assumiu o inquérito por determinação do então ministro da Justiça Flávio Dino, em fevereiro de 2023, é relevante, mas não suficiente para encerrar a investigação. Ainda precisam ser preenchidas algumas lacunas.

O inquérito é omisso, por exemplo, em relação ao capitão Bolsonaro, cuja residência no condomínio Vivendas da Barra dista não mais de 70 passos da casa do assassino Ronnie Lessa.

E é insatisfatório em relação ao general Braga Netto, que era interventor no Rio de Janeiro quando Marielle foi assassinada e os órgãos policiais a ele subordinados adotaram um itinerário deliberadamente acidentado para impossibilitar a elucidação do crime.

Embora Bolsonaro alegue não conhecer seu vizinho Lessa, as vidas dos dois se cruzam há pelo menos três décadas.

Em 1995, o então cabo da PM/RJ Ronnie Lessa devolveu a Bolsonaro a motocicleta Honda 350 cilindradas e a pistola Glock calibre 380 que haviam sido roubadas dele num assalto e depois recuperadas numa ação policial.

O caso teve desdobramentos sombrios. Meses depois, o autor do roubo, Jorge Luís dos Santos, já preso, foi encontrado morto na cela da delegacia na Barra da Tijuca por enforcamento com a própria camisa.

A esposa e a sogra de Jorge desconfiaram do alegado suicídio. Um mês depois de contestarem a causa da morte, elas apareceram mortas a tiros às margens da Rodovia Presidente Dutra.

Anos mais tarde, em 2009, Lessa foi ajudado por Bolsonaro na aquisição de uma prótese mecânica para substituir a perna atingida numa operação policial. Na época, ele já tinha parcerias com Adriano da Nóbrega, chefe da milícia Escritório do Crime e criminoso homenageado pelo clã Bolsonaro e cuja esposa e mãe faziam parte do esquema de corrupção do gabinete de deputado estadual do Flávio Bolsonaro.

Não são conhecidos os laços entre as famílias Lessa e Bolsonaro, mas foi amplamente noticiado que a filha de Lessa namorou Jair Renan, o filho Zero4.

O episódio envolvendo o porteiro do Vivendas da Barra é outro enigma que ainda precisa ser decifrado.

Em depoimento, o porteiro declarou que “seu Jair” autorizou por interfone a entrada de Élcio de Queiroz no local na tarde de 14 de março de 2018. Naquela mesma tarde, Carlos Bolsonaro também estava no condomínio na Barra da Tijuca, embora alegue como álibi a suposta presença em sessão da Câmara de Vereadores, no centro do Rio.

A escolha de Rivaldo Barbosa para comandar a Polícia Civil na gestão do Braga Netto como interventor federal também carece de esclarecimento.

O relatório da área de inteligência da Polícia Civil sobre processos criminais a respeito do envolvimento de Rivaldo com milícias não foi obstáculo à nomeação dele, e tampouco impediu o Exército de condecorá-lo com a Medalha do Pacificador, importante honraria concedida pelo comandante da Força Terrestre “aos cidadãos nacionais que tenham prestado relevantes serviços ao Exército” [Decreto 4.207/2002].

Em entrevista já depois da intervenção, em 11/1/2019, Braga Netto –que “ganhou dos amigos a reputação de ter o CPF, nome e endereço de cada miliciano no Rio”, segundo um experiente repórter policial–, insinuou saber sobre o autor do crime. “Eu poderia ter anunciado quem a gente acha que foi, mas quisemos fazer um trabalho realmente profissional”, ele declarou.

No entanto, embora ainda em 2018, durante a intervenção Braga Netto já tivesse suspeitas sobre a autoria do assassinato, Ronnie Lessa só veio a ser preso em março de 2019, já com os militares no poder com Bolsonaro.

Os militares sabiam que a prisão do vizinho e velho conhecido do Bolsonaro em plena eleição de 2018 produziria um efeito eleitoral devastador. A intervenção com o general Braga Netto no Rio, neste sentido, foi providencial para a eleição da chapa militar Bolsonaro/Mourão.

Talvez o assassinato da Marielle não venha a ser totalmente elucidado, porque talvez sequer descobriremos a verdade sobre muitos segredos deste período histórico obscuro.

Um desses segredos que salta à memória neste momento foi o agradecimento do Bolsonaro ao general-conspirador Villas Bôas, aquele que conspirou com o usurpador Michel Temer para derrubar a presidente Dilma.

“General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, declamou o capitão na solenidade de posse do general Fernando Azevedo e Silva no ministério da Defesa [2/1/2019].

Na solenidade de despedida do comando do Exército, dias depois, em 11/1/2019, Villas Bôas destacou que “2018 foi um ano rico em acontecimentos desafiadores para as instituições e até mesmo para a identidade nacional. Nele, três personalidades destacaram-se para que o ‘Rio da História’ voltasse ao seu curso normal. O Brasil muito lhes deve. Refiro-me ao próprio presidente Bolsonaro, que fez com que se liberassem novas energias, um forte entusiasmo e um sentimento patriótico há muito tempo adormecido. Ao ministro Sergio Moro, protagonista da cruzada contra a corrupção, e ao general Braga Netto, pela forma exitosa com que conduziu a intervenção federal no Rio de Janeiro”.

Embora enigmáticas, são palavras inesquecíveis, que em algum momento a história haverá de revelar o real significado delas, para que sejam definitivamente decifrados os mistérios sobre o assassinato da Marielle.

* Versão ampliada de artigo publicado no Grifo, jornal de humor e política, publicação de cartunistas da Grafar.

JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre. Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.

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