Por Lincoln Penna

O desprezo que o presidente Bolsonaro devota às manifestações culturais brasileiras faz parte de um projeto inspirado no combate à suposta influência marxista, comunista e de inspiração libertária segundo seus ideólogos, aos quais ele faz questão de representar. Mas essa fúria persecutória típica das práticas do surrado anticomunismo, que se tornou mundialmente conhecido com o macarthismo, no caso do capitão da reserva tem uma origem no momento da política da Abertura coordenada pelos generais Geisel e Golbery.

Como se sabe, a partir das crises do petróleo dos anos de 1970 em paralelo com as derrotas dos governos do regime militar e empresarial nas eleições gerais de 1974 e 1978, as oposições ganharam força e parte do comando militar passou a admitir a volta dos civis numa operação que não caracterizasse um revés. E esta negociação com lideranças políticas dos poderes do legislativo e da sociedade civil resultou na admissão por parte dos militares próximos a Geisel de uma transição, desde que ela fosse lenta, gradual e segura, segundo expressão do general presidente.

Com isso, a campanha pela anistia ganhou força e amplitude cabendo ao sucessor de Geisel, o general João Figueiredo, dar provimento à primeira das leis da anistia, em agosto de 1979,depois acrescida nos governos que o sucederam. Era parte de um acordo que beneficiassem tantos os atingidos pela repressão do regime comandado pelos militares, como também dos militares que operaram a repressão.

Foi nesse sentido uma anistia ampla, geral e irrestrita, muito embora muitos civis e militares até hoje não tenham sido contemplados com ela.

Contudo, para os militares que se opuseram à anistia, por eles considerada um arrego, a pressão desse grupo junto ao general Geisel contou com o apoio do ministro da guerra, general Sylvio Frota. Era a chamada “linha dura” constituída também pelos que atuaram no porão da ditadura e cuja importância perdera com a transição negociada. Estes foram golpeados nessa disputa pelo controle do regime, quando Frota foi sumariamente demitido por Geisel em razão de seu então ministro tentar derrubá-lo ao convocar reunião dos comandos do exército em Brasília para denunciar a infiltração comunista no governo militar.

Veio depois da anistia a convocação da constituinte em 1987, já nos tempos do governo civil de José Sarney, o que resultou na promulgação da Constituição de 1988, que, por sinal, tem sido alvo das investidas dos mais fanáticos apoiadores de Bolsonaro incentivado pelo próprio presidente. Nos termos da nossa Carta Magna há evidentes avanços alcançados se comparada às constituições anteriores promulgadas ou outorgadas. Sobressai dentre os avanços os que estimulam à produção cultural e essa perspectiva ao dar impulso a tudo que represente a cultura nacional e popular é tido pelos velhos algozes do regime militar como fruto da influência comunista.

Pouco antes da convocação, elaboração e promulgação da Constituição, foi editado o livro Brasil: Nunca Mais, que contou com o respaldo da diocese de São Paulo à época tendo à frente o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e um punhado de apoiadores e promotores culturais. O livro denuncia as torturas cometidas por agentes do Estado brasileiro, e em alguns casos tais práticas ocorreram em dependências militares, o que provocou grande impacto e a reação dos que se sentiram atingidos por essas revelações, todas devidamente comprovadas.

Na época, era figura de proa do exército o general Leônidas Pires Gonçalves, que havia sido designado ministro da guerra do presidente Tancredo Neves, que ao morrer antes da posse, foi mantido como os demais indicados por Tancredo para o referido ministério.

Dada a repercussão negativa para a “Revolução” dos militares e que respingava na sua imagem, o general Leônidas admitiu a publicação de uma versão na qual aquele segmento que atuara nos bastidores do regime pudesse contar sua história, convencido estava de que fora uma “guerra suja” e, portanto, todos os lados usaram métodos de guerra. O livro do porão intitulado Orvil (livro ao contrário) listou dezenas de organizações políticas armadas ou não, mas todas resistentes e empenhadas em superar a ditadura.

Para os seus idealizadores, não adiantara vencer essas oposições no campo militar porque na área cultural as esquerdas e, por conseguinte os comunistas tinham vencido a batalha das ideias, de modo a impor uma falsa verdade, segundo eles. Era, então, preciso que fosse rebatida a narrativa que ganhara a mídia e os meios culturais e acadêmicos, instrumentos nos quais as ideologias de esquerda têm grande circulação. Assim, caberia a um governo comprometido com essa tese de resgate da turma vencida na batalha interna das Forças Armadas a tarefa de reparar essas interpretações.

Com Bolsonaro, essa corrente teve guarita e vem infernizando não apenas tudo que se faz nos meios culturais, como tem violentado a democracia e ofendido o bom senso.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.