Por José Carlos de Assis –
É rigorosamente impossível pensar na reconstrução do Rio Grande do Sul sem considerar os efeitos da tragédia gaúcha no resto do Brasil.
Para compensar as perdas de produção física num Estado altamente produtivo, como ele, será necessário que os outros estados e áreas produtivas (ou que importações) compensem o que se perderá, a curto e médio prazos, com os prejuízos provocados pelas enchentes, especialmente na agricultura. Isso significa que a natureza profunda da política econômica brasileira, essencialmente as políticas monetária e fiscal, terão que mudar imediatamente.
De fato, nossa economia tem-se caracterizado como o que costumo chamar de “economia de especulação”, contrária a uma “economia de produção”. A economia de especulação baseia-se numa monstruosidade econômica introduzida nela ainda no golpe de 64, sob o pretexto de estimular a poupança e os investimentos privados. Na prática, aconteceu justamente o contrário. Favorecidos pela correção monetária, mais juros, os aplicadores em títulos públicos, com a segurança do governo que acumulava dívida não para investir, mas para fazer política contracionista, passaram a especular com dinheiro, em vez de investir em produção.
Isso só está sendo percebido pela sociedade principalmente agora, com a explosão da dívida pública alimentada por correção monetária diária, na forma das operações “compromissadas” conduzidas pelo Banco Central. As despesas governamentais com essa dívida têm custado, anualmente, cerca de metade do orçamento federal total, deixando apenas pouco menos da outra metade para financiar as despesas primárias do Estado, essenciais para o povo, relativas a setores vitais como Previdência, Saúde, Educação e Saneamento Básico, entre outros.
A grande mídia e o “mercado” naturalizaram a forma espúria de gestão da dívida pública, como se fosse inatacável, e fundada no direito adquirido à correção monetária. Não sou jurista, portanto não sei se esse direito realmente existe. Mas é preciso um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal a respeito. Do contrário, no avançar dos anos, o orçamento primário, e o próprio Estado brasileiro vão desaparecer, engolidos por despesas financeiras “inatacáveis”. E o Brasil, hoje influenciado pelos ricos e bilionários, acabará como propriedade total deles.
A mudança da política monetária e fiscal é fundamental na questão da reconstrução do Rio Grande do Sul. Se o resto do país tem que compensar as perdas físicas de produção no Estado, isso exigirá maior flexibilidade, menor burocracia e juros mais baixos na liberação de recursos para o sistema produtivo nacional pelos bancos públicos e privados. É óbvio que o atual presidente do Banco Central, que acaba de travar a redução dos juros, não está disposto a isso. Talvez seja melhor que saia do cargo antes da conclusão de seu mandato, no fim do ano, num acordo de Lula com o Congresso, para não se tornar um embaraço à reconstrução.
Tenho insistido em que, se quisermos uma economia com estabilidade de preços, é fundamental uma condição primária absoluta, conhecida de todos os economistas do mundo que não estejam comprometidos com a ideologia do “mercado”: equilibrar oferta e demanda de produtos e serviços no mercado real. Ou seja, abandonar o fetiche de que o déficit público gera o aumento da demanda e inflação, e que o aumento dos juros reduz a demanda e a própria inflação. Não seria mais lógico o contrário? Reduzindo os juros, a produção cresce, assim como a oferta física dos bens e serviços, desde que haja demanda financeira suficiente no mercado real para comprá-la. No caso atual, vai haver, porque o governo, obrigatoriamente, terá de recorrer a programas de assistência social em dinheiro, e o setor privado está colaborando no mesmo sentido.
Entretanto, o neoliberalismo, desde Milton Friedman, inventou um sistema extremamente complexo para formalizar as decisões do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos Bancos Centrais para dar conselhos sobre o controle da inflação pela manipulando da relação de déficit público e taxa de juros. É uma monstruosidade. Não vou entrar em detalhes sobre isso, pois basta o conhecimento de que a inflação é um desequilíbrio entre demanda e oferta no mundo real, para que seja controlada. A opção é escolher o lado a ser atacado: ou o da demanda, ou o da oferta.
Se a pressão inflacionária vem pelo lado da diminuição da oferta, a solução óbvia é procurar aumentá-la com investimentos produtivos financiados a juros baixos e a longo prazo, pois, caso contrário, os empresários procurarão alternativas de aplicações financeiras com maior rendimento, e com garantia absoluta do governo. É o caso da grande atração para eles dos títulos públicos com correção monetária e juros. Caso, porém, a pressão inflacionária venha pelo lado da demanda, a solução é compatibilizá-la com o aumento da oferta, e não desestimulá-la com aumento dos juros e do desemprego.
Em ambos os casos, é a mesma política econômica que deve ser aplicada, se se deseja preservar o crescimento da produção, do emprego e do PIB, dentro e fora do Rio Grande do Sul. Portanto, quando alegam que o déficit fiscal é a causa da inflação, os neoliberais – Roberto Campos Neto, e seus seis parceiros que votaram pela desaceleração da queda taxa Selic na última reunião do Copom – estão ignorando os fatores fundamentais da inflação e se posicionando, desde já, contra uma redução mais acelerada dos juros para favorecer a reconstrução do Estado e a produção de bens e serviços fora dele.
Os neoliberais do BC e os financistas oportunistas que os apoiam de fora sempre alegam que suas decisões são técnicas, e não ideológicas, como seriam os votos dos integrantes do Copom nomeados por Lula. Isso é absolutamente falso. A política de juros altos da instituição, agora como nunca, e especialmente diante do desastre no Sul, requer uma inversão imediata de rumo. Do contrário, como argumentei acima, os empresários que precisam de financiamentos baratos e de longo prazo para produzir não encontrarão suporte do governo e mesmo dos bancos privados para ter um maior acesso a crédito barato, público ou privado, e a longo prazo, para suprir, sem inflação, o mercado gaúcho e para estabilizar os preços no mercado nacional.
A política financeira e bancária, como também argumentei, deve ter caráter nacional, e não local. A produção gaúcha de bens e serviços, principalmente alimentares, caiu drasticamente com as enchentes, e não haverá condições para sua recuperação a curto prazo. Daí a necessidade de sua substituição, no mercado real, por produção alimentar dos demais Estados, pois a demanda local vai aumentar com a assistência social financeira do governo e do próprio setor privado.
Para isso é um imperativo redirecionar o Plano Safra, que abrange todo o País, para a agricultura familiar, pois esta responde por dois terços do consumo alimentar brasileiro, em face do setor altamente privilegiado do agronegócio.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, doutor em Engenharia da Produção, autor de mais de 25 livros de Economia Política e introdutor do jornalismo econômico investigativo no Brasil com denúncias de escândalos sob o regime militar que contribuíram de forma decisiva para o desgaste da ditadura nos anos 80. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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