Por Lincoln Penna –

“Na vida real uma economia pura é tão improvável como uma raça pura.” (Bárbara Wootton, “Libertad con Planificación”, México, 1946).

É oportuno estar atento à seara da economia política diante do que se passa no Brasil deste início de ano e de novo governo do presidente Lula. E o faço em razão de duas impertinências que me incomodam e, talvez, a outros brasileiros também. Refiro-me à questão dos juros e da economia em geral.

O primeiro incômodo fica por conta da ideia segundo a qual existe uma economia como uma ciência exata, jamais assumida pelos que discutem o que fazer em relação aos rumos de nossa política em geral. Mas se comportam como aqueles que detém o saber dessa condução. Acredito, como está reproduzido na epígrafe que a economia não é um lugar fechado no qual só tem acesso os que falam essa linguagem.

A economia como ciência busca estudar as atividades da produção material do ser humano e encontrar sua significação em face do que é realizado ao longo desse fazer. Quando ela se ocupa dos meios e dos fatores ambientais e sociais nos quais essas atividades se desenvolvem estamos diante da economia política. Neste caso as opiniões devem ser diversas e nessa diversidade encontrar um caminho, logo uma decisão política.

O outro incômodo vem de longe e recupera as duas mais contundentes críticas ao capitalismo, não pelas críticas, mas pela sua recorrencia. Tudo isso tem uma razão histórica que explica boa parte senão quase tudo que se passa no mundo do capital que nos governa. Claro, que cada uma dessas críticas dentro de seus respectivos universos de atuação e de acolhimento. Estou a me reportar ao marxismo e ao Cristianismo do papado de Leão XIII. Tanto o marxismo de Marx e Engels, quanto os termos da encíclica da última década do século XIX, são obras seminais relativamente à questão social, sem favor algum.

Quem contribuiu para ampliar ainda mais o significado dos fazeres humanos foi o filósofo alemão Karl Marx. A sua economia política, que passaria a ser definida como economia marxista não somente considera o fator ambiental e social como o aprofunda para esclarecer que este último é diverso, pois constituído de classes que se opõem, ao mesmo tempo que tem implicações no ambiente, sobretudo com o advento de um modo especial de produção, o capitalismo.

É evidente que não foi apenas Marx quem se ocupou em explicar as muitas alterações ocorridas ao longo do processo histórico, até porque a economia política desde sua época se vale do método e das instâncias históricas. Todavia, é em Marx que encontramos uma boa parte das respostas às muitas perguntas que o cidadão comum costuma fazer.

Sua importância não está na descoberta das classes sociais diferenciadas, mas na tese bem fundamentada de que o embate entre elas, as que ocupam o poder porque detém os meios de produção e as que são a este submetidas ou dependentes porque são instadas à vender as suas forças de trabalho, resulta nas lutas de classes. E são estas que têm produzido o processo histórico desde há muito. Sua superação decretará, dentro dessa prospectiva histórica, o fim da pré-história da humanidade, segundo sua concepção materialista da história, só possível com a eliminação das classes sociais.

Marx não considerava, portanto, a economia como uma ciência descolada da história, por ele considerada, aliás, a ciência das ciências dado que nenhuma outra pode se desfazer do conhecimento histórico, seja em seu próprio objeto a possuir uma historicidade ou no que concerne ao tempo em que se está a exercitar qualquer conhecimento, o mais específico que seja.

A propósito o economista Humberto Bastos em seu livro “Desenvolvimento ou escravidão”, publicado em 1964 pela editora Martins associava o econômico necessariamente ao social ao dizer que, “…a vida econômica vai deixando de ser um território autônomo, radicalmente uno, para confundir-se com a vida social. O econômico criando, por assim dizer, o social, por força dos inúmeros fatores novos surgidos no mundo capitalista.”

O mesmo autor faz alusão não apenas à industrialização que provocou um ritmo febril e alucinado de modo a injetar mais desigualdade social, como salienta nesse livro a contribuição não menos importante da encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, da última década do seculo XIX, uma vez que também a igreja percebe os excessos do “egoísmo individualista”, segundo se refere Bastos.

Assim, tanto a chave explicativa de Marx ao analisar os efeitos perversos da Revolução Industrial sob o comando burguês, como o catolicismo levado à época ao extremo no resgate de Jesus, transformado em Cristo e daí derivado o Cristianismo, sobretudo aquele praticado pelo Jesus original, o de Nazaré a inspirar essa encíclica. Ambas as correntes críticas da fúria perpetrada pela expansão industrial sem limites e sem fronteiras.

No que se refere ao marxismo, a solução se encontraria na superação do capitalismo mediante a necessária revolução social sob a direção do proletariado tendo à frente em especial a classe operária. Quanto ao catolicismo de cunho social o objetivo era o de condenar a riqueza fruto de uma industrialização que massificou o trabalho e buscou exclusivamente o ganho por parte de um segmento social, o patronato.

Nos dois casos, as condenações, a do filósofo materialista como o do papado de Leão XIII, se encontravam presentes a denúncia de uma miséria do ser humano, incapaz de promover o desenvolvimento com justiça social, algo que Marx julgava impraticável por parte da ideologia da usura inerente ao modo de produção capitalista a visar unicamente a acumulação.

E essas manifestações acabariam ensejando o aparecimento de leis visando à proteção dos trabalhadores em alguns países industrializados, bem como o surgimento ou ampliação do movimento operário e sindical na busca de melhores condições de vida. O mesmo aconteceria em diversos outros países, cujos interesses e as conquistas trabalhistas integraram essa nova legislação do mundo do trabalho.

À burguesia coube atrelar-se ao nacionalismo para fechar suas fronteiras, como instrumento para defender seus interesses e, em casos de necessidade apelar para a confrontação dando origem ao imperialismo surgido na disputa de mercados. Não por acaso, a multiplicação de guerras e conflitos localizados foi o resultado dessa política com vistas à dividir as classes trabalhadoras. Por sinal, Marx previa essa possibilidade em função do temor dos capitalistas diante dos desdobramentos do Manifesto Comunista de 1848 numa Europa em meio a mudanças políticas e institucionais.

As lutas sociais passaram a ganhar vultosas manifestações de massa e se tornariam recorrentes antes, durante e no imediato pós-guerra de 1945 em diante. O mundo se dividira sem, no entanto, abalar os alicerces do capital.

As políticas econômicas tornaram-se cada vez mais voltadas para os interesses do mercado. Este é o vetor principal dos economistas que se consideram “puros” que buscam satisfazer prioritariamente o agora e mais constante, a prática rentista baseada no controle dos juros. E o retrato de uma economia capitalista mais contemporânea na qual as finanças ganharam muito mais presença e força do que as indústrias. Do ponto de vista do olhar do grande capital faz todo sentido, porém no que diz respeito às massas proletarizadas sentido algum, senão a retomada da luta pelos seus legítimos interesses.

Concluo dizendo diante do que estou a chamar de economia da miséria por ser este o seu resultado mais palpável, reexaminando mais de cinquenta anos depois o ardor desenvolvimentista que empreendeu em seu trabalho o economista Humberto Bastos, um autor hoje em dia quase desconhecido, pelo menos pelas novas gerações. E o faço para que as contribuições da envergadura de Celso Furtado, Heitor Ferreira Lima, Alberto Passos Guimaraes e tantos outros aqui representados por estes, que tive o prazer de conhecer e deles buscar os primeiros ensinamentos na área da economia política possam se manter vivas.

Antes, porém, de finalizar essa reflexão cabe a manifestação indignada de Humberto Bastos:

“Se hoje os miseráveis estão na rua clamando contra a miséria, a culpa maior cabe aos promotores do pauperismo, aos fabricantes da pobreza, aos manufatureiros da indigência, aos latifundiários do egoísmo, indiferentes à escravidão…”

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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