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Militarização do governo Bolsonaro e a bandeira antifascista
Bolsonaro e os Militares. (Foto: Marcos Corrêa/PR)
Colunistas, Política

Militarização do governo Bolsonaro e a bandeira antifascista

Por Aderson Bussinger

Desde os tempos de faculdade, os temas da militarização e extrema-direita sempre me preocuparam muito ,até porque passei no vestibular de 1980 para a Faculdade de Direito da UFF, aqui em Niterói, onde, além de ter um de seus ex-alunos morto e desaparecido pelo regime militar (Fernando Santa Cruz), são muitas as histórias de CCCs (comandos de caça aos comunistas) que outrora agiam interior do antigo prédio no bairro do Ingá, tendo, inclusive, a extrema-direita durante a década de 70 tomado a direção do nosso Centro Acadêmico Evaristo da Veiga, então convertido em “Diretório Acadêmico”, durante o regime de exceção.

Mesmo após o abrandamento da repressão pós-1979 e início da denominada “abertura política”, eram comuns os casos de militares e civis pertencentes aos órgãos de segurança serem por nós descobertos em suas, por vezes, indiscretas espionagens na universidade, assim como- devo registrar- contávamos também com a solidariedade de policiais, honestos, que, frequentando o ambiente universitário apenas para fazer o curso de Direito ,sem integrarem tais “missões” de infiltração, nos forneciam dicas muito úteis de quem era de fato “araponga” para valer na faculdade, o que nos prevenia muito.

Foi assim o final do regime militar, em seus últimos 5 anos, um pouco mais brando, o que, todavia, não evitou a bomba que explodiu na OAB em 198O a o atentado do Riocentro, em 1981, bem como os banheiros da faculdade, vez em quando, amanheciam com pichações do tipo “deixe sua faculdade limpa matando um comunista por dia” ou “viva a ditadura”, o que logo denunciávamos com vigor, fazíamos um verdadeiro estardalhaço. Registro ainda que quando em 1984, fui retirado por policiais, em uma manhã de setembro, pela força, do interior de um escritório de Advocacia( sim um escritório de advocacia!) no qual estagiava, na Av. Amaral Peixoto, 467, oitavo andar do Edifício Fórum, bem no centro de Niterói, tendo ficado detido, incomunicável, até muito tarde daquela noite, sem qualquer acusação formal, o que naquela ocasião me deu, mesmo sem ter sido torturado, uma noção mais realista de como sorrateiramente agiam as forças da repressão, sendo uma verdadeira aula prática de anti-Direito que carrego como experiência para toda a minha vida.

Mas deixando de lado estas reminiscências da luta estudantil, quero adentrar mesmo no tema mais complexo e amplo da repressão e liberdades democráticas nos dias atuais. É verdade que não estamos ainda em um regime militar, conforme confessamente pretende Bolsonaro, mas temos que estar atentos, assim como fomos mais atentos durante a ditadura, sobre os passos que estão sendo dados exatamente nesta direção, a partir do Estado e do governo. Estamos assistindo, sim, a uma descomunal militarização do Governo, nunca antes vista desde o fim da ditadura de 64, sendo que, segundo dados oficiais do TCU, o número de militares colocados a disposição do atual governo dobrou, a partir de 2018, ao lado da propagação de escolas militares para crianças e jovens, implemento de dossiês sobre “antifascistas”, fortes evidencias de que há um imenso monitoramento clandestino das esquerdas neste governo, notificação de reitores de universidades para que proíbam a crítica política ao governo, o que se soma á proliferação e flexibilização da aquisição de armas e munições, o que evidentemente está melhor abastecendo os grupos paramilitares que apoiam Bolsonaro. Este quadro, enfim, é um evidente sinal de que a extrema-direita no poder se prepara para novas iniciativas, deixando para trás apenas a verborragia, o que pode ocorrer sub-repticiamente no interior do próprio regime democrático, com o cerceamento supostamente “legal” de liberdades e espaços democráticos legais, como pode também ser o prenúncio de ações abertamente extra-regimento constitucional , ou seja, sem respeito aos princípios do Estado de Direito e acabar reinaugurando no Brasil uma nova etapa autoritária, como estamos vendo em alguns outros países.

Sei que muitos podem dizer que estou exagerando, mas evidentemente não estou afirmando que seja algo “para agora”, de imediato, “para já”, como conclama o discurso do deputado-fascista Daniel Silveira preso pelo STF recentemente, mas cumpre observar, desde já, eventos que sinalizam neste sentido, embora não esteja dado como certo que obterão êxito, sendo que consigno estar dentre aqueles que não avaliam que conseguirão faze-lo, pois hoje a resistência será com certeza muito maior e efetiva do que foi em 1964, acredito eu. Por outro lado, as pesquisas apontam que o setor social pró-ditadura está em torno de 15% dos apoiadores de Bolsonaro, o que, embora seja com certeza um muito número preocupante, não pode ser confundido com a faixa de 30% que apoia o seu governo pelas mais variadas razões e motivos, muitas vezes apenas assistencialistas.

Todavia, isto não afasta que avaliemos os fatos, os sinais, e estes, como disse, não demonstram definitivamente que seja um governo que tenha a democracia como limite, muito pelo contrário, pois o Presidente é useiro e vezeiro em homenagear torturadores, ditadores como Médici, Ustra, Pinochet e outros tantos criminosos.

Cumpre também lembrar que as próprias revelações da “vaza-jato”, da Intercept, as investigações que estão sendo feitas sobre a atuação dos próceres do MP de Curitiba, nos demonstram a abundância de ações paralelas de órgãos repressivos, no interior do próprio sistema judiciário, bem antes, “por dentro e por fora do Estado”, levando a prisão do Ex-presidente Lula, para que não concorresse as eleições de 2018, bem como mesmo nos governos petistas, o MST sofreu com vários inquéritos do MP tentando incriminá-lo como “grupo terrorista” e as infiltrações policiais em movimentos sociais se fizeram presentes, ainda que em menor número, o que revelava que, apesar do compromisso de Lula e Dilma com o regime democrático, haviam forças incontroladas no interior do Estado atuando em prol do recrudescimento, desde muito tempo. Lembro-me, por oportuno, que no ano de 2008 fui ao Estado do Amapá, representando a OAB Nacional, a fim de solidarizar e socorrer um dirigente sindical dos rodoviários ameaçado de morte, e mesmo tendo em mãos um ofício pedindo prioridade para sua proteção assinado pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça, Dr. Tarso Genro, ouvi em alto e bom som de um dirigente da PF local que “ se o Ministro desejasse alguma providencia que ele próprio viesse pessoalmente ao Amapá falar com ele”! E isto quando, a esta altura dos acontecimentos, o referido dirigente já se encontrava com sua casa incendiada por grupos paramilitares, com toda sua família dentro! Recordo-me também que em uma reunião, em Brasilia, pela OAB, com o mesmo Ministro Tarso Genro, sobre direitos humanos, este foi bastante claro em sua avaliação de que haviam grupos de extrema-direita, incontrolados, agindo dentro do aparato estatal, e isto ainda antes do fenômeno do atual bolsonarista.

Com efeito, o militarismo, que não é um fenômeno somente militar, mas civil- empresarial, com tentáculos estendidos aos grupos paramilitares, já mostrou como atua em outro exemplo, na Bolívia, quando as milícias de extrema-direita cassaram violentamente e espancavam nas casas e ruas dirigentes do MAS, incluindo o próprio ex-presidente Evo Morales, ao mesmo tempo em que os Generais se insurgiam na TV contra o resultado eleitoral e exigiam a renúncia do presidente. Atualmente em Mianmar ocorre também outra intervenção militar, onde o Exército derrubou o presidente eleito, prendeu diversos líderes políticos, fechou o acesso a internet e suspendeu os voos para o pais. E, além de tudo que já sabemos do golpe de 64, cumpre lembrar que, antes disto, em 1938, grupos integralistas armados tentaram invadir o Palácio do Catete, porque insatisfeitos com a política do Estado Novo, do qual, inclusive, foram ardorosos defensores, mas posteriormente entraram em atrito com Getúlio Vargas. Lembremos também que durante o governo de JK houve a tentativa de rebelião militar patrocinada a partir da base de Aragarças, pelo qual em 1959 golpistas fardados do exército e aeronáutica chegaram a sequestrar um avião e pretendiam bombardear o Palácio do Catete. Enfim, exemplos não faltam e o recente episódio da invasão do Capitólio, como exemplo internacional maior, embora provocativo, significa, revelaram o que pode estar no horizonte no que diz respeito especialmente ao crescimento da extrema-direita.

Enfim, já caminhando para o final deste texto, sobre este tema do ataque e riscos á democracia, nada atualmente continua sendo tão exemplificativo como o assassinato da Vereadora Marielle e seu motorista Anderson, até hoje sem a identificação dos mandantes, o que aconteceu em pleno Estado de Direito, que, entretanto, “de pleno” está muito longe, como sabemos. O estágio inicial de militarização do Estado brasileiro, sob o atual governo, os ataques á imprensa e aos ativistas defensores de direitos humanos, indígenas e negros, nesta etapa reacionária que vivenciamos, exige e requer, ao lado de todas ações em favor das vacinas e da saúde, uma vigorosa campanha a fim de primeiramente conscientizar a população de que lugar de militares não é no governo, alertando para os riscos do crescente autoritarismo e sobretudo as experiências que tivemos durante as ditaduras de 1937 e 1964, para apenas citar estas duas intervenções civil-empresariais-militares mais duradouras e nocivas. É preciso que retomemos a divulgação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, seguir cobrando a punição dos torturadores de 64, processamento dos militares e civis que participaram dos crimes contra os direitos humanos e a investigação das empresas que financiaram o golpe de 64, bem como que o STF reveja a decisão que incluiu torturadores dentre anistiados, contra todos preceitos civilizatórios dos tratados internacionais.

Com efeito, ao lado da luta em defesa das prioritárias medidas sanitárias, pela vida, auxilio-emergencial e emprego, faz-se também cada vez mais necessário esclarecer sobre a relação que possuem estes militares de ontem com os militares atuais estão á frente do Governo Bolsonaro, a ideologia militarista que os une, além das fartas gratificações que os privilegiam, o que não tem nada a ver com as “pessoas dos militares”, (nada pessoal, portanto), mas sim em relação ao projeto político de reeditar um regime de exceção, em que o pressuposto seja a vontade de uma minoria fardada, aliada a empresários, grupos evangélicos e também paramilitares, conforme igualmente vemos crescer. É fato que entidades como nossa OAB, CNBB, ABI, congresso nacional, o próprio STF, tem dado sinais de resistência ao projeto autoritário, mas ainda é muito pouco ante o perigo que se avizinha, lembrando que a Alemanha nazista possuía, antes do apogeu de Hitler, um amplo sistema de instituições democráticas, uma constituição social-democrata avançadíssima, grandes partidos de esquerda e também outros tantos liberais, mas que não foi o suficiente para conter o totalitarismo. Exagero novamente na comparação? Espero sinceramente que sim, mas é bom colher lições da história, ficarmos mais precavidos, pois, embora não haja realmente “sinal de igual” entre o bolsonarismo e o nazismo, há, todavia, alguns traços, em comum entre os dois projetos, sendo evidentemente o germânico muito mais audacioso e sistematizado, sendo, inclusive o bolsonarismo “verde e amarelo” tosco e dotado de uma certa boçalidade.

Mas, exagero ou não, Temos que perder qualquer ilusão institucional de que apenas por questionamentos e impugnações legais este governo será contido em seus projeto autoritário, pois a dura realidade, após dezenas de pedidos de impeachment protocolados e engavetados, mais de 10 inquéritos no STF e denúncias de genocídio nas Cortes Internacionais, é de que somente pela superestrutura jurídica( ainda que necessárias tais iniciativas jurídicas) não se conseguirá conter esta escalada autoritária, como no recente caso de Lula, onde apesar das flagrantes ilegalidades de sua prisão, milhares de libelos jurídicos nacionais e internacionais em favor juridicamente de sua libertação, este seguiu preso por mais de um ano e não concorreu as eleições em que antes estava em 1 lugar nas pesquisas, como era de fato o desiderato de tal encarceramento político ! O militarismo também possui os seus juristas, magistrados, advogados, como teve Alfredo Buzaid, ministro de Médici que fundamentou juridicamente o AI-5 e o que entendia por “revolução”, e, ainda que tais argumentações acabem se revelando embustes, anacrônicos aos dias de hoje, o que faz fundamentalmente a diferença para a extrema-direita é a força das armas, apoio financeiro e a capacidade de angariar o apoio ideológico ou populista de vastas parcelas da opinião pública para seus projetos totalitários. Enfim, será necessário muito povo nas ruas para realmente conter o projeto que está sendo gestado no Planalto, quarteis e escritórios dos setores empresariais interessados em lucrar com o arbítrio, como lucraram em 64, pois, como assistimos no controle militar da Petrobras, os recursos financeiros em bilhões continuam a seduzir os “patriotas” bolsonaristas e seus sócios.

Por fim, não quero parecer pessimista, e, por este motivo, termino este texto homenageando – não poderia deixar de fazê-lo! – minha saudosa faculdade de Direito da UFF, que segue de pé enquanto um espaço de defesa do Direito e da democracia e que, em 2019, protagonizou um dos grandes momentos simbólicos de resistência, hasteando em sua fachada a famosa bandeira antifascista no alto do prédio federal, que quase levou a prisão de seu então Diretor, Professor Doutor Wilson Madeira, o que demonstra que, como diz a canção de Lo Borges, Marcio borges e Milton Nascimento, “sonhos não envelhecem” e, ao final, é possível vencer , o que só depende de nós, independentemente de ser de esquerda ou não, mas que tenhamos minimamente acordo e unidade de ação para defender o regime democrático, sem o qual perderemos todos.

Pois, ser antifascista neste especial momento que vivemos é, portanto, tão essencial como defender as vacinas.


ADERSON BUSSINGER – Advogado sindical, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, conselheiro da OAB-RJ, membro efetivo da CDH da OAB-RJ, membro do IAB, ABJD e ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas). Colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.

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