Por Roberto Amaral

A média móvel de óbitos diários bate recordes. Estamos no limiar do escandaloso número de 260 mil mortos. Nas últimas 24 horas foram notificadas 1.726 vítimas fatais da Covid-19. O país caminha para o colapso generalizado, e os infectologistas preveem um março sombrio. Manaus poderá ter sido apenas um aviso do que nos espera nacionalmente, se o capitão continuar à solta: um cenário de guerra construído pelo encontro diabólico do crescimento da epidemia, o colapso do sistema de saúde, o fim do auxílio emergencial, o aumento do desemprego, e, potencializando todos esses fatores, a irresponsabilidade do governo federal, irresponsavelmente protegido pela coluna castrense.

Mas o desastre sanitário poderia ter sido evitado. Se outro fosse o governo, e outra a organização político-popular.

O Brasil, pela base científica e tecnológica que logrou construir nos últimos 50 anos (o 13º país do mundo em produção científica) tinha todas as condições para liderar a fabricação de vacinas no continente, desempenhando o papel que, na região e no mundo, está sendo ocupado por China, Índia e Rússia, países aos quais logo se juntará, muito provavelmente, a solitária e solidária República de Cuba, que, em didático contraste com nossa impotência, anuncia para breve os testes clínicos de quatro vacinas produzidas nos dois grandes centros de pesquisa do país. Foram batizadas como Abdala, Mambrisa, Soberana 1 e Soberana 2, a mais avançada, que terá uma produção de 100 milhões de doses, e, promete o governo, será distribuída gratuitamente às populações mais pobres da África e da América Latina. Nós, porém, uma das dez maiores economias do mundo, um dos maiores e mais ricos territórios do planeta, estamos limitados ora à importação de vacinas, ora à produção de imunizantes dependentes de insumos fornecidos pela China ou pela Índia.

Nessa área, crucial para nossa segurança sanitária, engatinhamos. Dispomos de apenas dois centros de pesquisa e produção: a Fiocruz, no Rio de Janeiro, e o Butantan, em São Paulo. Instituições científicas respeitadas internacionalmente, mas nos últimos tempos dependentes dos humores do governante de plantão. Ambas, nos idos de 1964, viram seus melhores cientistas serem cassados e exilados. O capitão, entusiasta do arbítrio, desafeito à ciência e à cultura, implica com ambas, centros de cérebros pensantes. A Fiocruz produz vacinas utilizando tecnologia tradicional de largo domínio, como é o caso da vacina contra a febre amarela, desenvolvida pela Fundação Rockefeller (que cedeu a tecnologia ao Brasil no final dos anos 40), ao lado de vacinas que usam biotecnologia, como a quádrupla viral, a do rotavírus e as vacinas pneumococo e meningococo conjugadas. O Butantan produz a dupla bacteriana (DT), a tríplice bacteriana (DTP) e a vacina contra hepatite B.

A partir dos anos 80 do século passado, o Brasil desenvolveu um programa de autossuficiência em imunobiológicos que permite que cerca de 90% das 300 milhões de doses anualmente utilizadas no nosso Programa Nacional de Imunizações sejam produzidas aqui. A estratégia utilizada foi a de acordos de transferência de tecnologia entre nossos laboratórios públicos e as empresas multinacionais detentoras das patentes. Conseguimos dominar o processo de produção de algumas poucas vacinas, enquanto na maioria o processo de transferência ainda não foi concluído. De todo modo, foi essa estratégia que nos ensejou criar a base industrial a que se devem as produções da Fiocruz e do Butantan.

No mais, não apenas no que concerne à estratégica produção de vacinas, mas para a produção de medicamentos em geral, somos dependentes da produção de princípios ativos para a fabricação da quase totalidade dos medicamentos utilizados no Brasil, inclusive a maioria dos genéricos, para os quais importamos moléculas ativas da Índia, da China e do Vietnã. Os muitos laboratórios estrangeiros aqui instalados ou simplesmente envasam ou embalam produtos importados de suas matrizes, ou, ainda, simplesmente manipulam os insumos necessários à sua produção. Poucos são os laboratórios nacionais sobreviventes e que tentam inovar. Tivemos mais sucesso no campo dos cosméticos do que no de medicamentos.
Este quadro não é obra do acaso. Acentuado pelo bolsonarismo, suas raízes remontam à inexistência de um projeto nacional de desenvolvimento; não sem razão os governos Collor e FHC tanto trabalharam pela destruição do Estado.

O frustrado “caçador de marajás”, cujo governinho foi a primeira bem sucedida investida do neoliberalismo alienígena, destruiu as bases nacionais da indústria com a abertura irresponsável e sem limites da economia, o que inviabilizou a produção nacional de princípios ativos e levou ao fechamento de dezenas de empresas.

FHC, depois de esvaziar a universidade brasileira, e proclamar “o fim da era Vargas”, adotou, atendendo a exigências da indústria químico-farmacêutica dos EUA, a “nova lei de patentes”, com o que destruiu a possibilidade de uma indústria nacional de fármacos, baseada em moléculas isoladas da nossa biodiversidade. E anda por aí, lépido e fagueiro, serelepe, ditando regras. Essa lei, apesar de todos os prejuízos que vem causando à soberania do país e à saúde da população, até hoje não foi revogada ou mesmo modificada em seus aspectos mais nocivos. O que em si é um escândalo. Nada obstante sua vigência, porém, foi possível, no segundo governo Lula, a montagem de um projeto de ampliação da capacidade nacional de produção de tecnologias em saúde (genéricos, vacinas, biofármacos, testes de diagnóstico) e fortalecimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde, por meio de parcerias entre laboratórios públicos, empresas de capital nacional e empresas multinacionais, utilizando para isso o importante poder de compra do Estado na saúde e o apoio estratégico da Finep e do BNDES como agências de fomento. Essa política seria destruída ainda em 2016 pelo regime sucessor do golpe de Estado que depôs a presidente Dilma Rousseff. Tudo o que vivemos, hoje, é, pois, consequência de políticas de governos antinacionais.

A parte nesse doloroso drama reservada ao atual governo federal, qual seja, a logística de compra, distribuição e vacinação, revelou-se criminosa. O desacerto é de tal ordem que só se explica como projeto bem pensado. Completamos oficialmente o primeiro ano da incidência da peste com 10.587 infectados (número sabidamente subnotificado) e cerca de 260 mil mortos, muitos – quantos? – vítimas do negacionismo, terraplanismo e paranoia galopante do presidente ainda impune. O governo que nega a epidemia e sabota seu combate – entregue a um general que de nada entende – deixou de aplicar 80 bilhões de reais destinados à erradicação da epidemia. Atrasou a compra de vacinas, atrasou-se na compra de seringas, no fornecimento de oxigênio e anestésicos, no financiamento de UTIs, e fracassou rotundamente no planejamento da distribuição do imunizante. Em meio às críticas, tenta passar a culpa para os governadores.

Mas tudo isso ainda seria pouco para os artistas do circo dos horrores instalado no terceiro andar do palácio do planalto..

Com os dados disponíveis até aqui, a primeira dose das vacinas, em dois meses (janeiro e fevereiro) iniciou a imunização de 3% de nossa população, ou seja, apenas 6 milhões de brasileiras e brasileiros num universo de 210 milhões. Segundo nossos melhores infectologistas, para uma “imunização de rebanho” precisaríamos vacinar pelo menos 80 milhões da população brasileira. No ritmo atual, e se não houver novas interrupções no fornecimento da vacina, essa marca só será atingida em 24 meses. Este descalabro contrasta com o fato de sermos (éramos até o governo Bolsonaro) referência mundial em programas de vacinações.

O capitão, impune, continua sem coleira e de rédeas soltas, estimulando aglomerações e prescrevendo mezinhas sem serventia, como garoto-propaganda do laboratório que fabrica a cloroquina, valendo-se das redes sociais para veicular mentiras sobre o uso de máscaras, e, na contramão até de seu inepto ministério da saúde, desestimular a vacinação, único expediente conhecido pela ciência para deter a contaminação. O auxílio emergencial acabou, e os mais pobres caminham para a miséria. O desemprego atinge números inéditos: 14 milhões segundo o IBGE, a cujo contingente se somam os miseráveis que jamais procuraram emprego, os autônomos sem serviço, e o precarizado, os uberizados, o lupenato, as multidões dos sem terra e dos sem teto, dos que vagam nos campos e nas cidades sem esperança e sem futuro.

É preciso parar esse desvairado, e o Sendo Federal tem em suas mãos a grande saída: a Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia que o presidente do Senado Federal (quem é ele mesmo?) engavetou.

* Agradeço as leituras e os consertos do ministro José Gomes Temporão e do professor Wanderley de Souza. As deficiências persistentes, evidentemente, são de minha exclusiva responsabilidade.


ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do Partido Socialista Brasileiro.