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Meu pai – por Sérgio Cabral Filho
Colunistas, Memória, Política

Meu pai – por Sérgio Cabral Filho

Por Sérgio Cabral Filho

Meu pai morreu na manhã de domingo. Na verdade, tento escrever esse artigo ainda no domingo. Tento porque seria isso que ele faria como colunista de tantos jornais, como O Globo, Jornal do Brasil, O Dia, Lance, Veja Rio, e tantas outras publicações.

Meu pai nasceu em Cavalcante, subúrbio do Rio. Perdeu seu pai, Jugurta, aos 5 anos de idade. Minha avó, Regina, o criou junto com duas filhas mais novas. Meus bisavós eram vivos e deram todo o suporte à Regina. Cabral estudou em internato humilde e fez ensino médio e técnico. Trabalhou no que hoje é a Supervia. Logo abraçou sua paixão, o jornalismo. Em uma época que não havia exigência de diploma superior.

Trabalhou em todos os jornais cariocas. Foi colunista do Jornal do Brasil no início dos 60. Com uma coluna que marcou época, “Música Naquela Base”, abriu ao mundo da burguesia grandes talentos do samba carioca como Cartola e Nelson Cavaquinho e a nova geração como Martinho da Vila e Paulinho da Viola. Por acompanhar o sindicato dos jornalistas em uma greve, foi demitido do JB. Anos depois, nos idos dos 80, era o principal colunista de esportes do jornal O Globo, com a coluna “Papo de Esquina”.

Outra greve, Cabral disse que não era fura greve e Evandro Carlos de Andrade, diretor executivo do jornal, o ameaçou que era colunista e que todos os colunistas haviam enviado seus textos, com a sua exceção, e que se não enviasse seria demitido. Foi demitido e logo convidado para assumir a principal coluna do jornal O Dia. Cabral nunca deixou de ser o militante de centro-esquerda, forjado no velho partidão. Foi vereador pelo PMDB, se reelegeu pelo PSB e seu último mandato pelo PSDB. Mario Covas foi sempre um querido amigo. Minha trajetória política foi na mesma direção: partidão, PSDB e PMDB.

Cabral cobriu durante décadas o carnaval carioca para a TV Globo e a TV Manchete. Fundou o semanário O Pasquim, no início dos anos 70, com outros intelectuais como Jaguar, Ziraldo, Millor, Henfil, Tarso de Castro, Fortuna, Paulo Francis e Luís Carlos Maciel. Um time de primeira! Que bagunçou o coreto da ditadura. Depois de quase dois anos de vendas espetaculares de mais de 100 mil exemplares por semana, o regime militar prendeu todos eles. Aos 7 anos ia visitá-lo, ele sempre alegre e motivado.

Jogávamos basquete na quadra da Vila Militar. Ao voltar pra casa, minha mãe lia uma carta dele para os meus irmãos Claudia e Maurício, como se ele estivesse a trabalho em São Paulo. O sucesso do Pasquim nos permitiu, em 1970, mudar para o Leblon. De lá, fomos para São Paulo, onde a família Civita o acolheu na editora Abril e lá trabalhou na revista Realidade, espécie de mãe da Veja. Voltamos em 73 para morar em Copacabana, de onde meus pais nunca saíram.

Cabral dirigiu um show antológico no antigo Teatro da Lagoa, em 1973, com Paulinho da Viola e o conjunto de choro Época de Ouro, espetáculo que ficou meses em cartaz e provocou um boom do choro entre os jovens mais antenados. Aliás, o nome artístico de Paulinho da Viola foi dado por ele ao jovem Paulo César. Paulinho, Martinho da Vila e João Nogueira foram os grandes amigos dele no samba. Famílias amigas e fraternas. Cabral fundou com João Nogueira e outros bambas, o Clube do Samba. João e ele rodaram o Brasil com o show “Vida Bohemia” e com eles e Beth Carvalho realizaram o inesquecível show “ Onde o Rio é mais Carioca”. Shows que ficavam temporadas em cartaz. Sua obra com maior temporada foi o musical “Sassaricando” em parceria com a historiadora e pesquisadora Rosa Maria Araújo. Espetáculo que durante dez anos rodou o Brasil.

Autor de quase duas dezenas de livros. Quase todos biografias. De Tom Jobim à história da Mangueira e do Vasco. De Nara Leão a Grande Otelo. De Elizeth Cardoso a Almirante. Que fera! Cabral lembra a imagem do poema de um dos seus grandes ídolos, Mário de Andrade: “Sou 300, sou 350…”, pois atuou em frentes múltiplas.

Vereador, produziu leis importantes para a cultura, como a exigência da existência de teatro e cinema em shoppings centers. Ou a APA- Área de Proteção Ambiental do bairro de Santa Teresa. Presidiu o Comitê Pedro Ernesto, em 84/85, tendo o maravilhoso João Saldanha como vice, em defesa da campanha de Tancredo Neves à presidência da República.

Foi comentarista esportivo do SportTV e de inúmeros programas esportivos nas tvs e rádios do Rio e do Brasil. Fez a cobertura do Itamaraty para a Folha de São Paulo. Se tornou amigo fraterno de Magalhães Pinto, então ministro das Relações Exteriores. Entrevistou JK no Palácio do Catete no dia do quebra quebra dos bondes. Quando perguntou ao charmoso presidente qual a atitude do governo brasileiro diante da crise, JK o convidou a sentar em sua cadeira e perguntou o que meu pai faria no seu lugar.

Confidenciava-me que seus pais da vida foram Prudente de Morais, neto e Jacob do Bandolim.

Pelas suas mãos me apaixonei pelo Rio, pelo Vasco, pela música e pela política. Com ele e sua companheira de vida, Magaly, minha amada mãe, vivi em uma família fraterna e amorosa. Desde pequeno com a casa sempre cheia de amigos e personalidades de todos os segmentos da cultura, da política e do esporte. Nos ensinou a ser antirracista e a respeitar sempre os mais humildes. Quando fui expulso do Mallet Soares por ter reativado e presidido o Grêmio do colégio, proscrito desde que Wladimir Palmeira o presidiu, meu pai foi um leão frente à diretoria que me constrangeu e usava parentesco com oficiais do então dantesco Cenimar da Marinha brasileira.

Cabral viveu com alegria! Vinicius de Moraes, uma vez, na churrascaria Carreta, me disse, “olha meu filho, eu amo seu pai”. Tom Jobim e Geraldinho Carneiro também presentes o cobriram de afagos. Com Geraldinho fez um belo programa semanal na antiga TV Manchete, Bar Academia. Com Ziraldo, o irreverente ETC, na TV Bandeirante. Na TV Cultura de São Paulo, junto com Fernando Faro, participou de diversos programas de entrevistas com os principais nomes da MPB. Fez parte do CPC- Centro Popular de Cultura da UNE, a União Nacional dos Estudantes, com nomes como Oduwaldo Viana Filho, Leon Hirshiman, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, entre outros, nos anos 60. Levou às universidades Clementina de Jesus, Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, a Velha Guarda da Portela, Nelson Sargento e tantos outros.

Pelas suas mãos conheci as quadras das escolas de samba. Ele Portela, fez um dos sambas mais lindos para a Mangueira, “Os meninos da Mangueira”, em parceria com o músico, maestro e arranjador Rildo Hora. Me apaixonei pela Mangueira por sua causa. Marco Antônio, meu filho, foi da bateria da Mangueira do Manhã e da própria bateria titular. A dupla Cabral/Rildo fez inúmeras músicas que foram gravadas por Ataulpho Alves Jr, Martinho da Vila, Maria Creusa, entre outros.

Cobriremos seu caixão com as bandeiras do Vasco, da Portela e da Mangueira. Suas paixões. O Rio era sua paixão. Bar Luís, Lamas, Antonio’s foram bares e restaurantes que frequentamos pelas mãos de meu pai. No Bar Luís lançou livro, celebrou aniversário, e lançou pré-candidatura a prefeito em 85, mas acabamos apoiando nosso querido amigo Arthur da Távola. Fundador da Banda de Ipanema, liderada pelo querido Albino Pinheiro, todo ano no carnaval, lá estava eu de mãos dadas com meu pai, ambos de camisa do Vasco. Bom de copo, sua bebida preferida era o whisky, mas após o Alzheimer, pedia Campari. Tinha sido sua bebida junto com João Araújo, pai de Cazuza, no tempo das vacas magras. Acho que devia ser sua bebida na juventude. Quando o médico o proibiu de beber álcool, minha mãe tinha que driblá-lo.

Cabral era um grande frasista. Quando voltou com minha mãe de Cuba, no início dos 90, perguntei o que tinha achado, “meu filho, Cuba é Madureira no poder!”. No meu aniversário de 17 anos, me levou para uma excursão do show que dirigiu com Baden Paowell e Nelson Cavaquinho. Quantas passagens inesquecíveis, meu pai! O melhor papo do Brasil!

O Alzheimer apareceu em 2013. Em uma palestra no município de Itatiaia, discorrendo sobre Vinícius de Moraes, deu um apagão. Dali até o início de 2017, foi uma doença bem leve. Naquele ano sofreu uma séria queda em casa. Nosso amigo Paulo Niemeyer o operou e evitou o pior. Mas sua mobilidade ficou comprometida. No início conseguiu se movimentar com o andador. Mas com o tempo apenas na cadeira de rodas. Durante meus 6 anos e 1 mês de minha prisão, ele me visitou em Benfica, no dia dos pais de 2017. O barulho da penitenciária e o grande movimento de parentes e presos o deixou atordoado. Mas não deixou de dizer, “fica firme, você sabe quem você é”. Depois minha mãe o levou a algumas das inúmeras audiências da 7ª Vara do juíz afastado Bretas para me ver numa sala à parte.

Impressionante como seu Alzheimer era leve. Reconhecia a todos com quem havia convivido com frequência. Depois de sair da prisão, em dezembro de 22, pude saborear de sua companhia durante pouco mais de um ano. Já em março desse ano passou a apresentar um quadro mais delicado. E nos últimos três meses na UTI da Clínica São Vicente, cuja equipe se desdobrou em cuidar do meu velho e amado pai. Além da medicina, Magaly foi sempre seu principal elixir. Mais de 65 anos juntos, entre namoro e casamento. O casamento modesto em fevereiro de 62, teve dois luxos: o convite de casamento feito por Amílcar de Castro e as fotografias por Walter Firmo, companheiros de redação do Jornal do Brasil.

Minha mãe é uma leoa. Sua parceira de todas as horas. E dela cuidaremos com todo o amor a partir dessa nova fase de sua vida. Mas o que nos impressiona é a sua força, a sua determinação e lucidez. Privilégio para ambos essa linda relação.

Pai, descanse em paz. Deus já te acolheu. Daqui, Magaly, nós filhos, netos e bisnetos junto com uma inúmera legião de seus fãs, continuaremos a celebrar a tua linda vida e obra.

SÉRGIO CABRAL FILHO – Jornalista e Consultor Político da Tribuna da Imprensa Livre.

Instagram @sergiocabral_filho

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