Por Carlos Mariano

Em seu livro “A Memória, a História, o Esquecimento”, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) nos faz lembrar que o fenômeno do esquecimento envolve o dever de não esquecer e, ao mesmo tempo, nossa incapacidade de tudo narrar. Para Ricoeur, a conexão entre história, memória e esquecimento é contínua.

Essa reflexão nos serve muito para entendermos a narrativa que o mundo do samba fez sobre um dos seus personagens mais emblemáticos: Mano Elói Antero Dias (foto abaixo). Negro, intelectual, sambista e liderança política, ele foi o pioneiro na arte de fazer existir, de dar vida ao projeto da escola de samba idealizada pelos bambas do Estácio, no início do século XX. A memória que se tem hoje de Mano Elói, na maioria das narrativas sobre a trajetória do samba carioca, é a de um grande baluarte da fundação e história do Império Serrano, uma das escolas de samba mais tradicionais do carnaval brasileiro. Inclusive, o nome de Mano Elói é dado à quadra da escola do morro da Serrinha.

Como dizia Paul Ricoeur a respeito do fenômeno do esquecimento na narrativa sobre a memória das coisas, os historiadores têm apenas a capacidade de dizer sobre a história. Quem faz a história, de fato, são homens e mulheres no tempo. Seguindo os ensinamentos do mestre francês, descobrimos que a narrativa de pioneirismo de Mano Elói no mundo do samba, como grande arquiteto e incentivador da criação de escolas de samba nos morros e nos bairros do Rio de Janeiro, foi escondida nos subterrâneos da história.

Mano Elói foi um ativista negro que durante a década de 1920 levantou a bandeira de luta pela perpetuação social da cultura deixada pelos afro-brasileiros: as religiões de matrizes africanas, o jongo e o samba de sambar.

Elói Antero Dias, popularmente conhecido como Mano Elói

Na sua tese de mestrado “Escola de Samba Deixa Malhar: Batuques e Outras Sociabilidades no Tempo de Mano Elói na Chácara do Vintém entre 1934 e 1947”, o acadêmico Sormani da Silva, um intelectual de fora do mundo do samba, escreveu e elegeu Mano Elói como o principal personagem para refletir historicamente o encerramento das atividades carnavalescas da escola de samba Deixa Malhar pelo governo autoritário do Estado Varguista. A Deixa Malhar é o combustível para rememorar a narrativa sobre Mano Elói. Nela, Sormani nos mostra que a escola de samba Deixa Malhar criada pelo sambista, e que teve apenas nove anos de existência 1934-1943, foi, com sua militância carnavalesca, um polo de divulgação e resistência da cultura dos negros e negras recém libertos da chaga da escravidão.

Programação de homenagens a São Sebastião. Fonte: O Imparcial, 19 / jan. 1941, p. 12 (Reprodução)

Sormani revela que Mano Elói era um intelectual que tinha como objetivo fazer das escolas de samba um lócus institucional da cultura negra no Brasil. Na cabeça efervescente de Mano Elói, a escola de samba existiria para tirar o negro da informalidade e ser um vetor de protagonismo do povo preto em busca de uma proposta de nacionalidade que estivesse aberta à sua cultura. A escola de samba Deixa Malhar não foi tão somente uma agremiação carnavalesca no novo mundo dos desfiles, ela se estabeleceu como pioneira em expandir a cultura da diáspora negra por meio da religião de matrizes africana. Mano Elói era ogã no terreiro do babalaô Luiz Cândido, brincava o jongo e os batuques praticados pelas hordas de negros recém alforriados.

Registro da visita de comissão de escolas de samba ao Juizado de Menores. Fonte: Gazeta de Notícias, 28 jan. 1942. (Reprodução)

Joel Rufino, grande intelectual e ativista negro brasileiro, disse em seu livro “Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres”, que os sambistas negros das décadas de 1920 cumpriram, na visão dele, um papel de intelectuais pobres que mediavam com a sociedade da época os seus interesses como comunidade. O samba foi muito mais de que um ritmo musical, foi veículo de sociabilidade do povo preto. As inúmeras escolas de samba criadas a partir de 1928, contaram com o pioneirismo e sagacidade de Mano Elói. Ele imprimiu sua marca na criação da Portela, no samba que levou para o morro de Mangueira. Junto com o samba, Mano Elói incutiu nessas comunidades os valores da ancestralidade e irmandade da negritude que viviam na cidade do Rio de Janeiro.

Joel Rufino dos Santos – historiador, professor e escritor brasileiro, tendo sido um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país. (Imagem: TV Globo / Reprodução)

Um dos pontos importantes tratado na tese de Sormani sobre a Deixa Malhar são as razões que levaram o autoritarismo varguista fechar as portas da agremiação carnavalesca em 1943, no fim da Segunda Guerra Mundial. No período, várias instituições culturais e clubes dançantes tiveram suas atividades encerradas pelo governo, isto se explica pelo temor que Vargas tinha de perder o controle de manifestações populares que pudesse pôr em xeque o posicionamento ideológico do governo Vargas em relação ao conflito mundial. Outra razão buscada na tese para o fim da Deixa Malhar é o fato de o morro do Vintém – comunidade onde se estabelecia a escola de samba, localizada na região da Grande Tijuca e que também se convencionou chamar de Pequena África -, ser vizinho de uma classe média ruidosa. Essa vizinhança reclamou para imprensa da época sobre o barulho das festas da agremiação. Os sucessivos artigos escritos pelo crítico e colunista Berilo Neves, no jornal A Manhã, rebaixavam as atividades culturais da escola de samba Deixa Malhar como “prática bárbara dos povos atrasados”. Logo, em 1943, escola teve seu fim decretado pelo governo Vargas. Isso representou uma interrupção no processo de estruturação em curso liderado por Elói Antero Dias. Processo este que tinha na participação das recém-criadas escolas de samba no carnaval carioca, o objetivo central de ressignificar através do samba, da macumba e do jongo, a cultura dos negros libertos pela abolição. O fechamento da Deixa Malhar também representou uma interdição numa parte da história da vida de Mano Elói. Com o fim da Deixa Malhar, ele continuou sua gloriosa militância em pró do mundo do samba, mas os rumos e as ideologias das escolas de samba a partir dos anos 1950, com o fim da ditadura Varguista, foram sendo outros… Não menos importantes, mas que contemplava uma identidade nacional calcada na ideologia da chamada democracia racial, onde o samba deixa de ser lembrado como construção social dos povos afrodescendentes e passa a ser visto como identidade de uma memória nacional mestiça.

Em 1936, quando inventou junto à imprensa carnavalesca o título de Cidadão-Samba, Mano Elói, dentro da sua genialidade de um sábio negro, mostrava que se a República não queria transformar o negro em cidadão, mesmo depois de livre das amarras da escravidão, o mundo do samba o transformava, assim como as escolas de samba, numa espécie de bastião dessa luta em curso. Por isso, Elói estava presente em várias criações de escolas de samba na década de 1930 e fazendo várias parcerias com a imprensa carnavalesca. A Deixa Malhar representou esse espírito e projeto de intelectual negro, que era fazer da escola de samba uma instituição que ressignificasse a cultura da ancestralidade africana no Brasil. As cores vermelha e branca do Acadêmicos do Salgueiro são uma homenagem às cores da Deixa Malhar de Mano Elói.

Como a batida do Império Serrano, como seu jongo da Serrinha é também um legado deixado por Mano Elói no carnaval de hoje.

O legado do filósofo francês Paul Ricoeur nos lembra que a memória é o combustível da história, nós escolhemos quem esquecer, silenciar ou eleger como vilão ou herói. Hoje, na opinião pública carnavalesca, existe um esquecimento dessa memória de Mano Elói como sábio negro em defesa da sua raça e cultura.

E só uma postura ética-política de nós, historiadores, de rememorar a vida de Mano Elói, combaterá o esquecimento que, em última análise, é o desenegrecimento da memória do samba.

“Uma escola de samba”. Essa frase simples, slogan do Império Serrano, traduz o empenho da comunidade em ensinar a arte do samba para os herdeiros do legado deixado por grandes mestres, tais como Mano Elói, Molequinho, Tia Eulália, Vó Maria Joana, Tia Maria do Jongo, Silas de Oliveira, Wilson das Neves, Beto Sem Braço, Mano Décio, Dona Ivone…

BIBLIOGRAFIA

Tese

Da Silva, Sormani

“Escola de Samba Deixa Malha: Batuques e outras sociabilidades no tempo de Mano Elói na Chácara do Vintém entre 1934 e 1947”

Dissertação apresentada na CEFET/RJ para obtenção do título de Mestre.

Livros

Ricoeur, Paul

A memória, a História, o Esquecimento

2014 – editora da Unicamp

Rufino, Joel dos Santos

Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres

2012 – Editora Global

CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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