Por Roberto Amaral –
Leonel Brizola foi, sem dúvida, o mais influente e longevo quadro da política brasileira a partir dos anos 1960.
Não sei com quantos estadistas o processo social contemplou nossa frágil república. Mas, principalmente na sequência dos anos 1930, dois nomes saltam à vista: Getúlio Vargas e Leonel Brizola. O primeiro inaugura o ciclo trabalhista; o segundo, encerrando-o, cede caminho para a emergência do lulismo, vertente que negara o varguismo, cadinho de todos os vícios do sindicalismo brasileiro, na conclusão primária da socialdemocracia paulista, que, no governo, prometeu “enterrar a era Vargas”.
Getúlio – dominando a política e o imaginário nacional desde 1930, e, com o pequeno intervalo de 1945-1950, governando o país por 19 anos – constitui-se, até aqui, como nossa maior liderança popular. Riquíssima, é ao mesmo tempo personalidade política a mais contraditória, ao transitar da revolução conservadora de 1930 (movimento liderado por três governadores de Estado e operado pela elite do “tenentismo”) à modernização do pais, da democracia representativa de 1934 à ditadura do “Estado novo”, para enfim encerrar seus dias de forma trágica na condução frustrada de um governo democrático e nacionalista. Deixou como herança, em um rol extensíssimo, a legislação trabalhista, uma plataforma nacionalista e um partido político popular, bem como duas lideranças, seus conterrâneos João Goulart e Leonel Brizola.
Embora jamais lograsse a presidência da república, que tanto perseguiu, e para a qual se preparara no curso de sua longa carreira política – deputado estadual, prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul, deputado federal pelo antigo Estado da Guanabara, duas vezes governador do Rio de Janeiro – Brizola foi sem dúvida o mais influente e longevo quadro da política brasileira a partir dos anos 1960, quando, com seu voluntarismo e sua coragem quase temerária, alterou o curso da história escrita pela classe dominante e impediu o golpe militar de 1961, por meio da Campanha da Legalidade. A posse de Jango mantinha de pé a ordem institucional e ensejaria à já então enferma democracia representativa brasileira, uma dramática sobrevida de quase quatro anos, com o permanentemente contestado governo Goulart, durante o qual o país, nada obstante as contradições que militavam em seu bojo, assistiu, ainda que aos trancos e barrancos, a um dos mais largos períodos de liberdades democráticas e debates em torno de suas vicissitudes e alternativas, ponto de partida para a elevação da educação das massas, que apavorou as classes dominantes.
A fonte desse Brasil posto em discussão, a ser “passado a limpo” na academia e nas assembleias, como reclamava Darcy Ribeiro, remontava às lides de agosto de 1961. Não fôra, porém, uma rebeldia qualquer aquela do jovem governador gaúcho, pois materializava-se mediante a mobilização popular, levantando o país amorfo na defesa de um princípio tornado caro: a legalidade democrática.
A conciliação que se seguiu, qual seja, a condicionante do parlamentarismo de fancaria, traficada no Congresso com os militares e os representantes de sempre da casa-grande, não diminui os méritos do levante gaúcho, e mais ainda justificará o radicalismo que pautará a atuação política de Leonel Brizola, daí em diante, correndo o país que pretendia organizar, conhecendo as fragilidades do regime democrático (e, nele, do governo Jango), e certamente antevendo a retomada golpista, pois a partir de certo momento a conspiração se fazia à luz do dia: da Campanha da Legalidade resultara a semeadura da lição de que o povo organizado pode decidir seu destino, o que sobressaltava, e sobressalta ainda, os herdeiros do escravismo e da subserviência colonial.
Com seus acertos e seus tantos erros, as esquerdas brasileiras e as forças trabalhistas e populares de um modo geral (aí incluídas as correntes comunistas tradicionais) haviam assumido um novo papel na política, e os temas paroquianos foram substituídos pelas questões que diziam respeito à soberania nacional, ao desenvolvimento e ao combate às injustiças sociais.
Explica-se, pois, a ojeriza com que Brizola sempre foi tratado pelos militares, cujos 21 anos de mandarinato fustigou, como poucos dentre os chamados “grandes exilados”. Aliás, com Miguel Arraes, outro político longevo e de raízes populares próximas do antigo petebismo, seria o único sobrevivente da República de 1946 e da frustrada experiência liderada por João Goulart, contestada internamente pela onda conservadora daqueles anos, e desestabilizada pelos governos dos EUA, de John Kennedy a Lyndon Johnson, a quem caberia ligar o sinal de partida para a conclusão do golpe, operado pelos militares brasileiros.
Sobreviveriam, ambos, Brizola e Arraes, também ao ocaso da ditadura militar e, cada um ao seu modo, os modos distintos do gaúcho e do sertanejo, com idas e vindas, convergências e conflitos, terminariam por contribuir, nas últimas décadas do século passado, para a ascensão do PT de Lula e do “novo trabalhismo” ao poder.
Os velhos caciques fizeram chegar bandeiras avançadas às grandes massas, sotopostas desde o ocaso do varguismo e a crise das esquerdas, e por isso mesmo devem ser vistos como tributários talvez conscientes da eleição de Lula em 2002, decisiva para o estabelecimento de uma nova correlação de forças, essa que com altos e baixos chega esperançosa aos nossos dias, após os desarranjos que levaram à ascensão do protofascismo.
Brizola trouxe para o debate nacional a denúncia do imperialismo, levantado por Vargas em sua carta-testamento. Ambos sempre contaram com a resistência da burguesia associada dos grandes cartéis, servidoras das grandes potências, da Inglaterra aos EUA, cujos interesses ele afrontou ao nacionalizar a filial da International Telephone & Telegraph (ITT) no Rio Grande do Sul. A grande imprensa nunca lhe perdoou por isso. Brizola foi duramente combatido pelos poderosos “Diários e rádios associados” de Assis Chateaubriand e pelo poderosíssimo Grupo Globo que, considerando ser insuficiente enxovalhar sua imagem pública, tentou, numa operação associada com o poder militar, surrupiar-lhe a eleição de 1982 para o governo do Rio de Janeiro.
Que a feliz coincidência do centenário de Brizola com a expectativa da eleição de Lula seja a oportunidade de uma reflexão dos brasileiros sobre a crise política que nos alcança em seu ápice.
A figura do líder gaúcho chama a responsabilidade cada uma de nossas organizações e lideranças comprometidas com a democracia, o desenvolvimento e o combate sem recesso à ignominiosa desigualdade social que, em pleno século XXI, impede a construção da nação que merecemos ser.
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. www.ramaral.org
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