Por João Marcos Buch –
A miséria normalizada do cárcere.
No Roda-Viva, um dos entrevistadores pergunta a que nível de naturalização do absurdo o país chegou. Lázaro, enfaticamente, responde: “No nível máximo!”
Dois homens mexiam em um registro de água diante de uma garagem, um rapaz com apenas uma perna tentava se equilibrar, amparado pela muleta, na calçada esburacada, e duas crianças corriam no pátio de terra batida em frente a uma lotérica. Naquele início de manhã havia um movimento quase frenético em todo o perímetro da rua. Eu estava a caminho da prisão, para mais uma visita correicional.
Observando o cotidiano das pessoas, algo não saía de minha cabeça: a potente entrevista que assistira na noite anterior, do ator, escritor e diretor Lázaro Ramos, no programa Roda-Viva, da TV Cultura, a respeito de seu recém-lançado filme Medida provisória. A película trata de um futuro distópico, futuro esse bem próximo, onde a tensão racial explode. A parte que reverberava em meus pensamentos era o momento em que um dos entrevistadores pergunta a que nível de naturalização do absurdo o país chegou. Lázaro, enfaticamente, responde: “No nível máximo!”
Então, naquela tarde comum, de um dia comum, em uma semana comum, rumo à prisão, tornou-se impossível, para mim, pensar em outra coisa, senão na miséria que logo mais eu enfrentaria e o absurdo no nível máximo de sua normalização.
Logo ao me aproximar da unidade prisional, avistei algumas dezenas de familiares de presos aglomerados na portaria. Transpus a cancela, parei o carro e fui ao encontro deles, que, reconhecendo-me, cercaram-me para reclamar. Diziam estarem no local desde a madrugada sem serem atendidos. Lá foram para depositar o dinheiro mensal para adquirir, via administração, bens de consumo (higiene, alimentação etc) em favor dos familiares presos. Esse valor é conhecido como pecúlio e deveria ser proveniente do salário do preso trabalhador, por direito, mas, como o Estado não oferece oportunidade de trabalho, o preso, além de ocioso, fica também sem salário. Nessa ausência, ele depende dos familiares. Disse àquelas pessoas que falaria com o diretor para verificar o atraso no atendimento e logo haveria uma resposta. Desta forma fiz e desta forma os familiares passaram a ser atendidos.
Porém, o absurdo foi que todos ali consideravam natural que o Estado exigisse que famílias tirassem dinheiro de não sei onde para permitir mínima condição de vida de um filho, um pai, um irmão preso.
A ofensa dos direitos fundamentais permanece existindo na exploração da mão de obra escrava, no racismo, na violência de gênero, no extermínio dos povos originários das Américas, entre tantas outras searas. No entanto, talvez nesta etapa, é no sistema prisional que a coisa mais se escancarou, encontrando ação incisiva do Estado.
Há muito que o aprisionamento de humanos em calabouços acontece, entretanto, o que antes era menos disseminado, menos elucidado, menos visto, hoje mostra sua face, deslavadamente — a pandemia da Covid-19 contribuiu para esse descortinamento. E o absurdo, no nível máximo — aí entra a afirmação de Lázaro Ramos — é que, quando a miséria a que os presos são submetidos no país vem à tona, no lugar de nos chocarmos, nós a naturalizamos ainda mais!
Instituições democráticas como a igualdade e a liberdade encolheram e a justiça social cambaleou. Pobres ficaram mais pobres e ricos mais ricos. No sistema prisional a miséria passou absurdamente a ser aplaudida, com o governo atual segmentando e separando seres humanos, desumanizando aqueles que não lhes são devotos, coisa que era menos recorrente nos governos anteriores.
Tornou-se ainda mais aceitável pessoas presas adoecerem por leptospirose, tuberculose, hanseníase; mais aceitável pessoas presas serem largadas em um estado de natureza, onde precisam lutar por sua vida; mais aceitável trabalhadores do sistema prisional colocarem a própria integridade em risco, para cuidar de dezenas, centenas, milhares de presos amontoados e revoltados com a opressão estrutural; mais aceitável populações negras e populações vulnerabilizadas assumirem a totalidade de quem é levado para as senzalas do século XXI, em uma impiedosa neutralização para o aniquilamento; mais aceitável famílias pobres fazerem filas em frente ao cárcere para entregar dinheiro ao Estado…
Pois, é um absurdo, no nível máximo, aceitar esse horror! A política de Estado de naturalização da miséria tem que ser freada. Devemos manter as forças e mostrar as verdadeiras raízes da violência, resgatando os parâmetros da cidadania, longe do sistema punitivo, seletivo e próximo do estado democrático de direito. As políticas devem ser efetivamente de preservação da vida e da dignidade humana, no sentido mais profundo e histórico que isso significa; uma política marcada pelo antirracismo e pelo fortalecimento da classe trabalhadora. Do contrário, o absurdo absurdamente tornar-se-á mais absurdo ainda, e isso não é redundância.
Na inspeção, após passar pelos familiares e suas dores, adentrei no cárcere, e mais miséria vi. Sabia que veria. Não desejo descrever a miséria mais uma vez, não preciso, todos já sabem sobre o que falo. Mas eu não a naturalizei, não a aceitei, ela me atingiu e me provocou e eu novamente a ela reagi e me opus. Assim será!
Victor Hugo uma vez disse: “Sempre existirão infelizes; porém, não é impossível deixar de existir miseráveis”. Ele estava certo. Lázaro Ramos, quando denunciou o nível máximo da naturalização do absurdo, também!
JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.
Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique Brasil. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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