Por Jorge Folena –
Ao realizar o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 324 e a Reclamação 47.843, o Supremo Tribunal Federal permitiu, respectivamente, a terceirização das relações de trabalhos nas atividades meios e fins e validou a possibilidade da contratação de empregados constituídos como pessoas jurídicas (“pejotização”), o que significa que, artificialmente, colocou todos os que precisam trabalhar para sobreviver em uma inexistente igualdade de condições perante os detentores do poder econômico.
Ao fazer isto, o STF interpretou que a Constituição consagra a ampla liberdade de contratação e assegura aos “agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade”.
Ou seja, a partir desta interpretação firmada pelo Supremo, o aspecto econômico passou a ter primazia sobre o social, ao contrário de tudo o que vinha sendo construído desde os anos de 1930, no Brasil, e que, inclusive, está expresso na Constituição de 1988, que estabelece que a ordem econômica brasileira “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.”
Para compreendermos essa mudança de interpretação jurídica, abertamente contrária à própria letra da Constituição, é necessário abordar aqui os conceitos de poder e violência, a partir das teorias política e do direito, o que tentaremos fazer de modo resumido.
Podemos afirmar, de modo sintético, que poder e violência são as duas faces da mesma moeda: para se exercer o poder, há que fazê-lo por meio da violência; e a violência se executa pelo poder. As lições e conclusões sobre a natureza do poder e da violência não têm origem em meras divagações metafísicas, pois nascem da realidade empírica.
O poder não é criação da mente humana, é antes uma constatação do que se verifica na própria vida, onde os mais fortes (física ou intelectualmente) se impõem sobre os demais seres; por isso se diz que “o direito do mais forte é o único reconhecido” (Gramsci).
A materialização do poder dá-se por meio da violência, que se constitui por meio da força; e, ao criar o Estado, o homem passou a deter o monopólio do uso do poder e da violência, de forma institucionalizada. Deste modo, o grupo político que controla o Estado determina o que pode e o que não pode ser feito pelas demais pessoas (Alf Ross).
Assim, as classes ou grupos subalternos, constituídos pelos que estão à margem da sociedade, “sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes” (Gramsci) para submetê-los à ordem violenta do Estado, que lhes dita o que podem ou não podem fazer.
Sendo o Estado uma criação metafísica, é possível afirmar, a partir desta construção, que o Direito é violência, pois, ao mesmo tempo em que concede direitos e determina o que se pode fazer, por outro lado impõe restrições às pessoas e dita o que podem ou não fazer; a efetivação desse jogo é executada pelo aparelho burocrático estatal, detentor do poder de colocar em prática “a violência historicamente reconhecida ou sancionada”, expressada pelo Direito Positivo.
Para os teóricos, o Direito pode se manifestar por meio de sua natureza originária, materialmente real, ao revelar seu conteúdo de mediação. É o que se verifica quando alguém é chamado a decidir quem está certo ou errado em determinado assunto. Ao ser decidida a questão, o Direito se realiza.
Porém, a concepção do Direito como elemento de pacificação dos conflitos sociais se exerce e materializa por meio do poder e da violência. Quando o Estado pacifica um conflito, o faz por meio da violência institucional, pois dispõe do poder de impor sanções e restrições a direitos.
Historicamente, as normas jurídicas são impostas por um príncipe ou legitimadas pela soberania popular, ou, ainda, constituídas pela livre manifestação de vontade dos seres humanos. Essas normas compõem o Direito Positivo e possuem inegável força e violência sancionadora, pois “Todo poder, enquanto meio, tem por função instituir Direito ou mantê-lo” (Walter Benjamin).
O direito à vida é o elementar direito natural. Apesar de constituir uma aparente construção intelectual, o direito à vida é a base de tudo para o ser humano; e suprir as necessidades fundamentais é indispensável à sobrevivência do homem.
Sem vida, não há ser humano, único ente capaz de produzir cultura. Por isso, o direito natural tem existência material, pois, sem vida, não se pode constituir o Estado nem permitir a sua apropriação pela utilização do poder e da violência; sendo que, para o direito natural, “a violência é um produto da natureza”, empregada para “fins justos” (Walter Benjamin).
Este ensaio visa questionar a construção doutrinária do realismo jurídico, espelhado na escola norte-americana, que se manifesta mediante a ideia de que o direito se concretiza por intermédio das decisões judiciais, visto que tal teoria já nasce impregnada de poder e violência e pode ser utilizada para justificar a mais perversa crueldade, que ignora os fins justos de um Direito Natural, baseado na soberana vontade popular.
Tal situação pode ser resumida nas decisões do STF acima citadas, que retiraram direitos dos trabalhadores, consagrados por décadas no país, e, sob o pretexto da ampla liberdade econômica, fizeram valer o poder da classe dominante em detrimento dos direitos sociais, o que caracteriza a violência institucional.
Nesse contexto, não se pode ignorar que, quando os luminares da hegemonia propugnaram que o século XXI pertencia ao poder judiciário, que é uma das formas de expressão e representação do poder da classe dominante, o fizeram para incentivar juízes a interferir diretamente na atividade política.
Infelizmente, muitos agiram assim no Brasil, inclusive sobrepondo-se à Constituição e desrespeitando princípios fundamentais, a fim de perseguir supostos inimigos políticos e justificar a retirada de direitos sociais dos trabalhadores.
JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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