Por Aderson Bussinger

A justiça eleitoral, até pelo próprio objeto de suas deliberações, se trata do ramo mais politizado do judiciário brasileiro, só perdendo mesmo para o STF, que, como instancia derradeira, acaba tratando e julgando (ou mesmo propositalmente deixando de julgar) todas as questões políticas da república, dos municípios aos Estados, legislativos, biografias, questão indígena, costumes, até mesmo opções sexuais e seus reflexos jurídicos, causas advindas de todos os ramos do direito, enfim, tudo o que é, sempre foi e nunca deixará de ser político. Esclareço antecipadamente aos meus conhecidos servidores, advogados e magistrados que tenho contato nesta Justiça especial, que reconheço o trabalho de todos que labutam honradamente nesta jurisdição, sendo que minha análise e critica, ainda que em breves linhas, se dirigem á estrutura e aos mecanismos de poder que informam e perpassam sua atuação institucional como um todo.

Adentrando no tema, a justiça eleitoral é de fato extremamente política e são numerosos os exemplos de julgamentos, sejam de impugnação de candidaturas de parlamentares ou governantes eleitos, dos quais se tem notícia do peso do fator politico no julgamento dos autos de processos eleitorais. Quem não se lembra do famoso processo de disputa pela sigla do PTB, perdida pelo Ex-Governador Leonel Brizola, no final do regime militar? Voltando ainda mais ao passado, quero rememorar aqui o julgamento do processo de cancelamento de registro do então Partido Comunista do Brasil, em 1947, que sob os ventos democráticos da derrubada da ditadura do Estado Novo, havia eleito em 1946 uma expressiva bancada de 14 deputados, dentre estes Jorge Amado e Carlos Mariguella e, ainda, um famoso senador que havia sido liberto do cárcere, o ex-capitão Luiz Carlos Prestes, o que representou verdadeira façanha em termos políticos e eleitorais, para um partido que há pouco tempo havia reconquistado sua legalidade e se reorganizava no país.

Pois bem, quem tiver curiosidade de ver os detalhes do processo, acessível nos arquivos do TSE e internet, verá o quanto a cassação do PCB foi um ato essencialmente politico – e autoritário –, voltado para atender aos interesses da elite reacionária que temia o avanço das forças populares no país, ainda que durante o Estado de Direito da Constituição de 1946, mas cujo conteúdo não deixa nada a desejar aos regimes militares autoritários. O processo já começou de maneira canhestra, a partir da denúncia política de um deputado anticomunista e com parecer contrário do Procurador-geral que discordou da abertura de investigação. Na sequência, o voto vencedor no Plenário do TSE, por 3 a 2, contra a posição do Relator, é puro anticomunismo, preconceito e reacionarismo, com condenações da “revolução de 1917”, ojeriza a ex-URSS, ao que abominavam enquanto “influência estrangeira”, onde ministros se colocam como “juízes patriotas” no combate do que que entendiam por uma doutrina política- partidária, maléfica, associação ao comunismo internacional, (como se o liberalismo econômico e político que professavam também não tivesse sólida e histórica vinculação internacional), sendo que, em um dado momento do relato do voto vencedor, um ministro assim declara, em relação ao partido haver apresentado declarações e documentos demonstrando defender a democracia: (…) “satisfação pelo denunciado das exigências de declarar a defesa aos princípios democráticos, foi apenas uma “ acomodação”, uma transigência para obter o registro e nada mais” (…). E em outro trecho assim registra: “torna-se imprescindível a prova documental? ” Enfim, apesar de toda resistência dos advogados do partido, e do voto de dos magistrados que foram coerentes com os princípios liberais do pluralismo político, foi um célebre julgamento contaminado do início ao fim pelo anticomunismo e a guerra fria, e que acabou cassando em 7 de maio de 1947,o registro da agremiação, através da Resolução n. 1841, o que resultou, mais adiante, na perda de todos mandatos eletivos conquistados legitimamente e legalmente, tendo acontecido ainda que, após o partido em 1948 impetrar recurso perante o STF, aprovou-se casuisticamente uma lei “sob medida da perseguição” ( 211/48) extinguindo os mandatos de deputados cassados, o que foi assim a “pá de cal” na breve representação comunista, isto em pleno regime democrático.

Passados mais de 70 anos deste histórico julgamento, continuamos a ter a mesma justiça eleitoral inegavelmente política, sob os ventos do casuísmo político, e, prova disto, são as notícias de crimes eleitorais que somente muito depois são apurados e julgados, como doações ilegais de campanhas, que, ocorridas há vários mandatos atrás, mais de uma década, estão vindo á tona através das delações premiadas,documentos descobertos, como no atual caso do governador afastado Witzel, que chegou a declarar a justiça eleitoral que não possuía nenhum centavo em conta bancária quando do registro de sua candidatura em 2018, para agora saber-se que no mesmo período recebeu cerca de R$ 900.000,00 em doações através de contratos de escritórios de advocacia. Ou seja: a justiça eleitoral, o Ministério Publico Eleitoral, “nada viram”, ou se viram não foram rigorosos, mas ao final tudo homologaram e endossaram. Trata-se, portanto, de um sistema de fiscalização e controle falido, em que pese a competência e boa-fé de seus profissionais, mas que a realidade dos financiamentos demonstra que os controles são ineficazes para coibir os grandes esquemas de financiamento eleitoral, apegados ao excesso de formalismo, enquanto que, na prática, faz-se mesmo o que quer nas campanhas eleitorais, em menor ou maior grau, dependendo da atuação, maior ou menor, deste ou daquele tribunal regional, mas, que uma vez o processo chegando ao TSE, temos então a primazia definitiva do voto político.

Caminhando para o final deste texto, importante destacar que, atualmente, o TSE tem em sua pauta um dos processos de maior repercussão politica da história do Brasil, tal como foi a cassação do PCB, sendo que, em sentido inverso, quando está sob julgamento não uma candidatura oriunda das esquerdas, mas a legalidade da eleição do direitista ex- capitão do Exército, Jair Messias Bolsonaro, acusado da práticas de ilegalidades em sua campanha eleitoral a presidência, notadamente o financiamento ilegal de propaganda igualmente ilegal em seu favor, através de fakenews, pagamento de robôs por meio de empresas, dinheiro ilegal, difamação e calúnia, via redes sociais, com o objetivo – e êxito alcançado ! – de influir no resultado eleitoral. Estes, em síntese os crimes eleitorais sob exame e que, mais uma vez, estamos vendo, a começar pela vagarosa instrução do processo, como realmente funciona a justiça eleitoral no pais, guiada não somente pelo código eleitoral, legislações eleitorais e Constituição Federal, mas por um outro código, não escrito, invisível, discreto, secreto, que contém os interesses das elites no poder. E, finalizando, no atual contexto, uma elite econômica que resolveu bancar, por meio do regime formalmente democrático, um projeto autoritário para Brasil.


ADERSON BUSSINGER – Advogado sindical, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, conselheiro da OAB-RJ, membro efetivo da CDH, membro do IAB, ABJD e ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas). Colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.