Por Conrado Hübner Mendes –
Contra a mistura do mal com atraso, um pacto pela linguagem simples.
O bacharel em direito aprende muita coisa na faculdade. Entre elas, escrever mal, especialmente mal. Passa a confundir elegância com mau gosto, clareza com cafonice, termo técnico com termo bizantino. Na sua estante importam os dicionários, enciclopédias e almanaques.
Quando entra na profissão, o bacharel conclui esse “regime debilitante” e se torna um “medalhão completo”, na ironia de Machado de Assis.
O estilista do juridiquês costuma ser um inseguro linguístico. Sérgio Rodrigues, na Folha, explicou: “Por insegurança linguística, medo de errar, é comum a gente enfeitar a prosa, trocando, por exemplo, ter por possuir, estar por encontrar-se”. É aquele que “enche suas redações de ‘outrossim’ e outros entulhos juridiquentos”.
O bacharel não fala “entrar” se pode soltar um “adentrar”, não escreve “dessa maneira” se pode esbanjar um “destarte”. Se tem à mão um “vocábulo assaz côngruo para a exordial”, por que se rebaixar a um “termo apropriado para a petição inicial”? Em estágio avançado, não aceita dizer “semana passada”. Vai lá e dispara um “hebdômada pretérita”.
A iniciação no juridiquês se dá pelo garimpo de palavras. Quer multiplicar o glossário de sinônimos raros, esquisitos, bem-soantes. Não se deve repetir “Constituição” se há todo um leque de opções: carta magna, lei maior, lei suprema, lei das leis. Há “Codex Obreiro” no lugar de CLT, “Pergaminho Adjetivo” no lugar de Código de Processo.
Na lição seguinte, o juridiquês te faz não só usar expressões latinas convencionais, mas memorizar aquelas sinalizadoras de sua distinção, ou falta de noção. O “data venia” já se tornou ordinário, mas não o “tantum devolutum quantum appellatum”.
Para além do latim, o estrangeirismo soma um ar cosmopolita. Como Gilmar Mendes, que jamais se referiu à Corte Constitucional alemã sem nos ensinar que o certo é “Bundesverfassungsgericht”. Em licenças poéticas exaltadas, mira a câmera para gritar “eine grosse Konfusion”. Ou ainda como Luiz Fux, que deixou de dizer “atores” e adotou “players”, abandonou o “senso comum” para abraçar o “common place”.
Há também o repertório da adulação, formas excêntricas de tratamento. Em vez de reduzir o Supremo Tribunal Federal a esse nome insosso, chame-o de “Augusto Sodalício”, “Pretório Excelso”, “Egrégio Areópago”. Dirija-se ao Tribunal de Justiça como “sédulos desembargadores dessa perleúda corte”.
O bacharel avançado vai além das palavras exóticas. Ele se esmera na construção de estruturas sintáticas labirínticas. Devoto do cânone dos almanaques, tem um modo peculiar de se relacionar com o mundo das ideias e da cultura. Mistura pílulas de Aristóteles com versos de Drummond. Às vezes escorrega e atribui a Drummond o verso de internet “o que importa é que sempre é possível recomeçar”, citado em discurso por Fux.
Mas o juridiquês não é só um jeito ridículo de se expressar e um manancial para a chacota. Além do estético, o juridiquês opera um efeito político e moral. O ornamento se torna meio para exercer autoridade, a carteirada estilística opera a exclusão, a exibição de credenciais sabichonas impõe hierarquia e desigualdade. O detentor de prerrogativas te olha de cima.
Antonio Candido (“A vida ao rés-do-chão”), ao refletir sobre as virtudes da crônica, nota que esse gênero literário, “na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite recuperar com a outra mão certa profundidade de significado”. Não atua como “disfarce da realidade e mesmo da verdade”; sua “perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão”.
O estilista do juridiquês é um inimigo da crônica. Ser entendido ou se fazer de entendido, eis a questão para o jurista bacharelesco. Entre o entendimento e o ofuscamento, opta pelo obscuro e esotérico.
Para combater o pacto magistocrático do juridiquês, Luís Roberto Barroso, autor da mais límpida e humanizadora frase judicial de todos os tempos, dita ao rés-do-chão a um colega —”Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”— acaba de anunciar o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples.
Iniciativas assim são mais fundamentais do que parecem. Poderão ter efetividade se monitoradas pelo jornalismo e pela sociedade em geral. Porque senso do ridículo não é uma virtude magistocrática.
Conrado Hübner Mendes – Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC
Publicado inicialmente na Folha de SP. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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