Por Katia Marko –
“Tem um recorte racial de quem encarcera e um recorte racial e de classe de quem é encarcerado”, diz Karla Aveline.
“Esses dias tinha um moleque na quebrada com uma arma de quase 400 páginas na mão. Uma minas cheirando prosa, uns acendendo poesia. Um cara sem nike no pé indo para o trampo com o zóio vermelho de tanto ler no ônibus. Uns tiozinho e umas tiazinha no sarau enchendo a cara de poemas. Depois saíram vomitando versos na calçada. O tráfico de informação não para, uns estão saindo algemado aos diplomas depois de experimentarem umas pílulas de sabedoria. As famílias, coniventes, estão em êxtase. Esses vidas mansas estão esvaziando as cadeias e desempregando os Datenas. A Vida não é mesmo loka?”
Com esses versos do poeta Sergio Vaz, a juíza gaúcha Karla Aveline de Oliveira, da 4ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre (RS), iniciou a sua sentença inédita em que negou acusação por tráfico de drogas do Ministério Público contra adolescente. Na sua decisão, Karla usou a poesia “A Vida É Loka” para justificar como a desigualdade social, a violência e o desamparo do Estado tornam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em alvos de organizações criminosas e do trabalho infantil.
“Descobri que a minha palavra e a minha poesia têm utilidade”, disse o “poeta das periferias” em entrevista ao site Ponte. O poeta conta que ficou feliz de ver que seus versos sobre educação e juventude negra e periférica estejam reverberando no “juridiquês”. “A poesia salva e liberta. É esperança de que tem gente boa em todos os lugares. É um oásis no meio de tanto ódio, vingança e uma juíza que tem um olhar humano, para além das leis severas e injustas para o nosso povo”, considera.
Karla Aveline integra o Tribunal de Justiça RS, como magistrada de primeiro grau, desde 1997. Segundo ela, sempre questionou qual a sua contribuição para a permanência das desigualdades estruturais e de que modo poderia se apropriar de conhecimentos e dar a esses a função social de transformação da sociedade. Em novembro de 2019, passou a atuar no 3º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS, o qual detém competência exclusiva para executar medidas socioeducativas impostas aos/às adolescentes em conflito com a lei.
Atualmente tramitam milhares de processos no Rio Grande do Sul em que o/a adolescente que exerce atividade remunerada para as organizações criminosas que se ocupam do tráfico de drogas – cuja condição legal corresponde a de trabalhador infantil que sofre uma das piores formas de exploração – sujeita-se a medidas socioeducativas, na maior parte das vezes, com privação de liberdade, em vez de ser protegido pelo Estado através das medidas protetivas previstas em lei.
Nesta Entrevista Especial ao Brasil de Fato RS, a juíza Karla Aveline explica sua decisão e fala da sua pesquisa no mestrado sobre o Racismo institucional, trabalho infantil no narcotráfico e a magistratura sul-rio-grandense: branquitude brasileira em silêncio, entre outros temas.
Brasil de Fato RS – Como surgiu o interesse pelo tema da tua dissertação de mestrado sobre o Racismo institucional, trabalho infantil no narcotráfico e a magistratura sul-rio-grandense: branquitude brasileira em silêncio?
Karla Aveline – Eu participo da Associação Juízes para a Democracia. A AJD congrega várias colegas de outras áreas do conhecimento, não só da Justiça Estadual, mas da Justiça do Trabalho também. Dia 12 de junho é o Dia Internacional de Erradicação do Trabalho Infantil. É uma data para se refletir a respeito do assunto. Em 2019 ouvi falar pela primeira vez sobre o trabalho infantil no narcotráfico. Perguntei pros meus colegas da Justiça do Trabalho e me apresentaram o tema. E eu achei aquilo incrível, porque eu nunca tinha escutado falar sobre isso.
Eu participava de um grupo de colegas da Infância e Juventude. Coloquei esse assunto em discussão, e teve zero de retorno. Sabe quando tu colocas um assunto em discussão e ninguém se manifesta? Achei estranho aquilo. Eu continuei falando com os meus colegas da Associação de Juízes do Trabalho e descobri que o Ministério Público do Trabalho vinha há muito tempo levantando essa discussão. Há mais de 20 anos, mas que não havia repercussão na Justiça Estadual, onde eu estou inserida.
Então eu acabei mudando a linha de pesquisa, para procurar entender as razões pelas quais há um absoluto silêncio a respeito desse tema. Eu vou analisar as causas estruturais do encarceramento, fazer uma análise interseccional disso também, classe, raça e gênero de quem encarcera, raça, classe e gênero de quem é encarcerado, para procurar entender esse silenciamento a respeito de um tema que na verdade coloca trabalhador infantil como um traficante.
Na minha pesquisa busco entender esse silenciamento a respeito de um tema que na verdade coloca trabalhador infantil como um traficante.
Percebi que esse adolescente está sendo explorado pelas grandes organizações criminosas, mas na realidade ele não é tratado como um adolescente que merece proteção, e sim que merece a responsabilização, que no mais das vezes vai importar em privação de liberdade. Se fala que é uma medida socioeducativa, mas o sistema socioeducativo como um todo ainda é muito contaminado pelos valores das minorias que ocupam os cargos de poder e saber.
O juiz ou a juíza repercute os mesmos valores dessa sociedade onde a gente está. Não são neutros. Como essa neutralidade não existe, porque cada juiz e juíza vai sim nas suas decisões, quer queira, quer não queira, consciente ou não, reproduzir os valores daquela sociedade com quem ele se identifica, evidentemente que esse adolescente vai acabar sendo encarcerado invés de ser protegido. Então foi assim que eu me aproximei do tema e me surpreendeu muito.
E como foi pra ti dar essa sentença inédita no Brasil? Houve muita reação?
Eu já sabia que no Rio de Janeiro esse tema é debatido há muito tempo. O Observatório de Favelas já fazia esse estudo, assim como o Ministério Público e o do Trabalho. O desembargador do RJ já havia tentado e sempre era vencido em segundo grau, quando a Defensoria Pública sustentava essa questão, era rechaçada em primeiro grau e quando subia em grau de recurso ele acolhia. Eu li os acórdãos, eles chegavam a dizer que era teoria do caos. Então não enfrentava a questão do controle de convencionalidade, porque dentro do próprio sistema nós temos condições de afastar sim uma legislação federal que “criminaliza” entre aspas, que na verdade responsabiliza. É um eufemismo para dizer que eles vão para celas, invés de dormitórios. Então tu trocas o vocabulário, mas na prática é a mesma coisa.
Evidentemente que há uma diferença entre o sistema socioeducativo do prisional, mas o fato é que há privação de liberdade, há esse tipo de enquadramento como alguém que está em conflito com a lei. Eu venho propor que o Estado é que está em conflito com a lei. O Estado invés de proteger o adolescente, fica encarcerando.
Na verdade, eu estou até surpresa, porque eu percebi que houve um debate muito grande através da voz da periferia. O que mais viralizou, foi porque uma juíza estava dialogando com a comunidade, com as comunidades periferizadas, foi isso que primeiramente chamou atenção. Então foi muito interessante que através da voz da comunidade uma decisão judicial tenha chegado à discussão na própria comunidade, porque se fosse só uma sentença não teria tido esse impacto. A resposta foi muito boa, porque assim não houve uma rejeição imediata, houve uma perplexidade com o tema.
Através da voz de Sergio Vaz foi dada vazão para essa demanda.
Eu acho que a gente está no primeiro momento de visibilizar o tema. A sociedade tem que discutir, que tipo de sociedade a gente quer, e a gente tem que saber quem é que a gente está encarcerando. Eu fui muito enfática em dizer que é um juvenicídio, como várias linhas de pesquisa referem, é um genocídio do povo negro. Porque essa juventude encarcerada mesmo no RS, que a maior parte da população é branca, ainda assim a maior parte dos adolescentes que entram no sistema carcerário são negros. Então tem um recorte racial de quem encarcera, e tem recorte racial e de classe de quem é encarcerado.
Essa sentença questiona a lógica da meritocracia que diz que o adolescente vai para o crime porque é uma escolha individual dele. Com esse debate tu propõe uma outra forma de pensar, inclusive sobre o papel do Estado.
Sim, porque quando o adolescente vai trabalhar pra organização criminosa, que são organizações transnacionais que lucram muito, ninguém está preocupado com isso. Pode fazer entrevista com o juiz da área criminal, nunca ninguém prende, encarcera o dono, o patrão. A gente só pega realmente aquele trabalhador explorado, precarizado, que não teria uma garantia, que responde com a própria vida se perder a droga na biqueira. Esse adolescente está pressionado, porque a gente sabe também que apesar da proibição, há décadas as drogas continuam sendo vendidas, todo mundo consome, isso é uma realidade. Então, esse adolescente fica entre a cruz e a espada, entre a polícia, e aí a gente sabe que tem corrupção estatal, e entre os patrões, porque o patrão mesmo nunca vai pra cadeia.
Mas antes desse adolescente chegar no tráfico, já tinha acontecido a evasão escolar. As escolas também não estão preparadas, porque há falta de investimento nas políticas públicas. Esse adolescente invariavelmente, todas as pesquisas mostram que ele já vinha em trabalho infantil, seja na construção civil ou como carregador, enfim, diversas outras, as meninas no trabalho doméstico.
Então eles acabam tendo que sair da escola, e temos essa questão do racismo estrutural e institucional, que tá onde? Tá no Judiciário, nas escolas. E onde é que estão os brancos e brancas? Estão nesses lugares de poder e de saber. Isso atinge todas as estruturas. E esse adolescente e sua família vêm sofrendo esses impactos desde o nascimento do guri.
São coisas muito básicas que faltam, e muitas vezes o tráfico vai ser a única oportunidade que ele tem de trabalho.
Em uma sociedade com grande apelo consumista, e que ele nem a família conseguem fazer frente ao mínimo, como poder comer bem, poder dormir bem, ter um colchão, de não ter goteira, de enfim, tu estar doente, tu pode ir lá comprar um remédio… São coisas muito básicas assim que faltam, e muitas vezes o tráfico vai ser a única oportunidade que ele tem de trabalho, de remuneração, de renda, porque faltam políticas públicas também de transferência de renda, de geração de emprego.
Lembrei da história do livro Os supridores, do escritor gaúcho José Falero, que é a história real de muitos adolescentes nas periferias do país.
Sim, eu participo de um grupo de estudo da UFRGS, sobre juventudes e violências, e a professora, Ana Paula Mota Costa, já foi inclusive presidenta da FASE, propôs esse livro. Eu achei muito impactante a leitura do livro, porque eu leio os relatos de violências gravíssimas quando chego nas audiências desses adolescentes. Mas Os Supridores vai mostrar o por trás da cabeça, o que passa lá na comunidade, o que os adolescentes estão pensando. Tem um trecho do livro que é incrível, porque ele vai dizer assim: “Eu vou trabalhar aqui, mas eu logo vou sair, eu quero trabalhar aqui pra depois chegar e ter possibilidade pra começar”. Porque eles não conseguem nem começar, que é ter igualdade na arrancada que eles não têm.
Eu acho incrível também dos Supridores que mostra o quanto aquela juventude sim quer ler, quer estudar, quer sair daquilo, quer trabalhar, quer ter oportunidades que eles não têm, e que os nossos filhos, da classe média branca do centro sempre vão ter. Não se questiona que um adolescente classe média, média alta, não vai ter uma faculdade, isso pra ele já é, já tirou de letra. Quanto pra aquele, tu não sabes nem se vai terminar o ensino médio, o ensino fundamental que seja.
Eu acho a arte fundamental. O que o Sérgio Vaz trás… Eu me identifiquei muito com aquela poesia dele. Com Os Supridores também. Todo juiz e juíza deveria assistir o filme Central. É um documentário que, pelo amor de Deus, se tu não conseguir entender as guerras, as drogas de outra forma… Mas é um sistema também de manutenção de poder há 521 anos. Então isso não é por acaso, isso é de caso pensado.
Isso que é o pior, a gente saber que é de caso pensado. Tem um trecho também nos Supridores muito boa, quando o Pedro mostra pro Marques o filho do rico chegando com o seu supercarro e fazendo a comparação: “Tu achas que ele lutou pra chegar aonde ele chegou? Ele já ganhou tudo de mão beijada”…
Exato. E as coisas que seriam mais comuns pra nós, por exemplo tu ir na padaria comprar um presunto, um queijo, um iogurte, é o que ele consegue. Então é um ideal para ele, de tu poder comer um lanche da tarde, que é o lanche da tarde da classe média. Isso também é chocante! É a manutenção disso que a gente diz que é caso pensado. Por isso a importância de a gente olhar a questão por um viés racial, porque nós brancos e brancas temos privilégios.
Nós mesmas, mulheres que somos atravessadas pela questão de gênero, ainda assim a gente tem privilégio na raça. Isso vai abrir portas em todos os sentidos, seja na entrevista de emprego, seja até de andar na rua. As mulheres negras sofrem abordagens e violências muito diferentes das mulheres brancas. Por quê? Devido à questão da objetificação, da sexualização do corpo.
Eu vejo que tem um lugar pro negro na sociedade que é de ser encarcerado, hierarquizado, desumanizado.
Eu vejo que tem um lugar pro negro na sociedade que está construído e que a gente segue nesse projeto, que é de ser encarcerado, hierarquizado, desumanizado. Então a gente não se importa com esse genocídio do povo negro, de que a cada 23 minutos um menino negro seja assassinado, ou quase 40 mil pessoas jovens sejam mortas, como o atlas da violência vai nos dizer. Ninguém está se importando, porque a gente sabe que tem um viés racial nisso.
Então a minha sentença foi a partir da pesquisa que eu fiz, onde dialoguei com mais de 15 pesquisadores e pesquisadoras negras, pra poder compreender isso. E a partir daí também fazer a minha reflexão a respeito desses privilégios da branquitude, de como a branquitude segue produzindo essas violências de forma política porque tem interesse, porque tem privilégio, porque tem ganho com isso.
Tu percebes que o Judiciário está mais aberto para esse debate do racismo estrutural?
Eu acho que isso é bem recente. No Rio Grande do Sul a gente não percebe isso, mas o Conselho Nacional de Justiça com certeza, mas é muito tencionado pelos movimentos negros. A morte daquele pai de família que foi asfixiado e morto em oito minutos foi uma coisa delirante e gerou uma repercussão pelo mundo ocidental muito forte. Eu acho que a partir dali teve visibilidade na mídia hegemônica que não quer mostrar, porque as vozes da periferia sempre estiveram aí. E isso também tomou as ruas, e chega um momento que vai tensionando, tensionando, e vai ter que haver uma mudança. E essa mudança não vai se dar de cima pra baixo. Tensionado nessa luta o poder Judiciário vai acabar tendo que ouvir e se modificar de alguma forma. No RS eu não percebo nenhum pouco esse tipo de disposição, nós não tivemos nenhum tipo de discussão com viés racial.
Como tu avalias o atual sistema socioeducativo?
Desde novembro do ano passado eu tenho tensionado a FASE (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo) sistematicamente, em todos os âmbitos da socioeducação. Eles precisam de reavaliação. Eu tenho apontado diversos direitos violados. Nós temos trabalhado de forma conjunta, de uma forma muito enfática, e tem dado resultados, mas a gente percebe que nessa área, assim como no sistema prisional onde eu também já trabalhei, tu tens que estar sempre tensionando, porque dá a impressão que tu avanças e daqui a pouco tu volta pro mesmo ponto.
A gente percebe que nessa área, assim como no sistema prisional onde eu também já trabalhei, tu tens que estar sempre tensionando.
É impressionante que, quando eu cheguei em novembro, já comecei fazendo as inspeções, e fui me dar conta que os adolescentes, desde o início da pandemia, nunca mais tinham tido contato com nenhuma professora da rede. Ou seja, eles estavam sem aula e ninguém tinha questionado isso. A gente não está falando só do Judiciário, a gente tá falando que não havia questionamento. E aí eu começo a ouvir os adolescentes nas intenções e vou me dando conta que os adolescentes ficaram fazendo entre aspas “trabalhinhos”, sem nenhum contato com professor, ou seja, não teve aula virtual, não teve aula gravada, presencial muito menos, nas celas, que eles chamam de dormitórios.
Então a educação nós não tínhamos, e a sociabilidade muito menos, ou as oficinas, paralisou tudo. E muito recentemente, a partir disso então, eu vou determinar que juntem os relatórios para saber o que que estão fazendo, quais são os horários, quais são os planejamentos. Até que eu dou uma decisão judicial de 15 páginas, expondo essa realidade que é vergonhosa, aplicando pena de multa diária pra que restabelecesse imediatamente as aulas, e apontando coisas assim absurdas. Essa decisão foi publicada no boletim do Instituto Brasileiro, o IBDCRIA, porque ela vai expor a realidade da socioeducação, pelo menos em Porto Alegre.
Eu não posso falar em nível estadual e nacional, mas eu acho que em outros estados talvez não estivesse tão ruim quanto aqui. Mas a partir da minha decisão eles retomaram as aulas, começaram a apresentar os planejamentos.
Quando tensionados eles dão respostas, mas eu tenho várias questões que têm que ser resolvidas.
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.
Publicado inicialmente no BdF Rio Grande do Sul. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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