Por João Marcos Buch

Sempre que me deparo com jovens aprisionados, cujos nomes se referem aos de cantores que marcaram época, penso no que seus pais sonhavam ao fazer os registros de nascimento.

No meu último dia de expediente, antes de uma pequena folga de férias, já noite adentro, olhei para minha mesa de trabalho. Os livros estavam enfileirados, a agenda física disposta em frente, aparas e canetas ao lado, as duas telas do computador bem assentadas. Tudo alinhado, como eu gostava de deixar. Num canto, porém, havia uma pilha de cartas, mais de cem, que olhavam para mim. Eu as havia recolhido na inspeção prisional da semana.

Minhas pálpebras estavam cansadas, meu corpo pedia repouso e eu sabia o que encontraria naquele material, o efeito que teria em mim. O processo de ler cartas que transmitem dor, que lançam gritos de socorro e que sussurram esperança, é duro. Entretanto, não podia deixar o trabalho para depois, eu precisava ao menos separar o que era mais urgente e passar para a assessoria. Resoluto, puxei o lote para minha frente e comecei a ler folha por folha.

Não tivesse feito isso e não teria duas histórias, de dois Johns Lennons, a me acompanhar.

Por um par de horas anotei, consultei processos, agrupei requerimentos, efetuei novas pilhas. Quase no fim da triagem, uma carta teve sua vez, a subscrita por um preso chamado John Lennon, do qual lembrei, pois na inspeção ele havia me chamado a atenção.

Existe uma regra impiedosa e sem base legal em muitas prisões, algo que se tornou costume, que diz que os presos não podem olhar ou se dirigir a autoridades, o juiz inclusive, sem serem chamados. É obrigatório que virem para a parede e olhem para baixo e só se voltem quando autorizados. A justificativa é a disciplina e respeito, que precisam ser garantidos. Para mim, é mais uma forma de submissão, de redução da dignidade, da afirmação histórica do “sou seu escravo, o senhor é meu dono”. Nunca aceitei isso e sempre faço questão de conversar face a face com todos, ainda que com o cuidado para não colocar ninguém em má situação.

Pois bem, tendo isso em conta, durante a inspeção, no corredor de uma das galerias, vi uma fila de presos de frente para a parede e com a cabeça abaixada. Um rapaz jovem, negro, cabelo raspado, descalço, levantou um pouco a cabeça e olhou para trás, tentando me ver. Aquilo era uma demonstração clara de que ele queria me dizer algo. Parei e comuniquei ao diretor que conversaria com todos. Imediatamente, vários presos passaram a se dirigir a mim. O rapaz em questão ficou no final da fila. Ao chegar na vez dele, perguntei seu nome. Era o John Lennon da futura carta em minha mesa. Disse ter certeza que muitos faziam brincadeiras a respeito do seu nome, mas que admirava o cantor. Perguntei a ele, então, se tinha algo que queria saber e ele respondeu que sim, que tinha uma carta para mim na sua cela. Trocamos mais algumas palavras, falei-lhe que ele era um rapaz jovem e que ainda haveria chance de reparação, restauração. E sobre a carta, ele poderia buscá-la, para juntar a todas as outras daquela galeria, que eu levaria tudo para o Fórum. Ele agradeceu. Despedimo-nos, não sem antes eu garantir que apanharia a carta dele.

Na missiva, que estava agora em minhas mãos, ele pedia por trabalho, dizendo que se arrependera de tudo que fizera e que a prisão o estava enlouquecendo, principalmente por ter um filho pequeno que necessitava de sua ajuda. Havia um tom de lamento e esperança nas palavras. John Lennon estava preso por homicídio, tinha 21 anos, e desde os 12 fugira de casa, vivendo pelas ruas, praticando pequenos ilícitos, sendo usado em prostituição. Certa vez, tentou voltar para casa, mas a ninguém encontrou, mãe e irmãos mais novos não viviam mais no barraco e haviam desaparecido no mundo sem deixar rastro. John Lennon manteve-se nas ruas, nas periferias, nos becos, no submundo. Já maior de 18 anos e com um filho recém-nascido, por se encrencar com um cliente que se recusara a pagar pelo programa feito, sacou de sua faca e, sem pestanejar, esfaqueou o sujeito, que veio a falecer. A condenação não tardou: 12 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, crime hediondo…

Coloquei a carta na pilha dos urgentes, pois envolvia um jovem pai que queria trabalhar para auxiliar o pequeno filho.

Naquele momento, eu não sonhava que encontraria, fora do Brasil, em Londres, na Pentonville Prison, unidade para adultos com penas médias, mais um John Lennon.

Desde que resolvera pegar os dias de férias, a partir de contatos com professores e pesquisadores do sistema prisional britânico, ajustei uma visita a uma prisão de Londres. No local e hora marcados, logo que cheguei ao portão de entrada, tive uma breve explicação sobre o sistema prisional local. Em seguida, adentramos na unidade. Em caráter geral, aquela prisão ainda não garantia a integral dignidade da pessoa humana aos presos. Poucos presos tinham acesso a trabalho e nem todos estudavam. A alimentação também deixava a desejar. Entretanto, Pentonville gozava de condições radicalmente melhores que as prisões brasileiras. Nela não havia superlotação, os presos dividiam quartos de dormir em duplas, todos com camas, toalete, havia janelas (com grades) por onde a luz do sol e a ventilação entravam com amplitude. Todos tinham recreação e, especialmente, transitavam entre os policiais penais e visitantes com liberdade. Isso me impactou. Eles realmente podiam dialogar, podiam pedir e questionar, tudo de maneira altiva, com a cabeça erguida, sem receios, não havia submissão explícita. Agi com naturalidade e ninguém percebeu o quanto extraordinária aquela cena era aos meus olhos.

Foi nesse ambiente que avistei um rapaz negro em um ateliê, debruçado sobre uma grande mesa, desenhando algo. Aproximei-me e me apresentei. Ele respondeu: “Olá, sou John Lennon”. Sorri e ele sorriu de volta. Contei que no Brasil também havia presos com o mesmo nome, um inclusive que eu encontrara uma semana antes. Ele ficou curioso e quis saber mais sobre o John Lennon brasileiro. Contei um pouco e aproveitei para falar como eram as prisões no meu país. O jovem arregalou os olhos quando soube da superlotação e como os presos se empilhavam nas celas. Ele quis saber se eu mandava muita gente presa e eu respondi que, infelizmente, sim, mas que tentava sempre evitar fazer isso, pois não acreditava nas prisões, muito menos nas do Brasil.

Pedi, então, para olhar o desenho sobre a mesa, o que ele autorizou com gosto e orgulho. A obra, quase acabada, retratava a face de um homem em que, conforme a maneira que se olhava, em um momento estava de frente e em outro de perfil, num jogo de imagens. Enquanto observava os detalhes, perguntei se ele se importaria em também me contar sua história. Sem problemas, para ele era muito natural falar de si.

John Lennon era da periferia de Londres e o pai, um imigrante vindo da Nigéria, fã dos Beatles, obviamente, havia morrido quando ele era bem novo. A mãe, com mais filhos, mandou que ele parasse os estudos e começasse a trabalhar para ajudá-la em casa. Só que ele nada queria com o trabalho e preferia namorar, jogar basquete e usar drogas. E, então, fez que fez que acabou sendo preso por tráfico. Agora, na prisão, descobrira o gosto pelo desenho. Perguntei qual era o maior sonho dele, além da liberdade. “Viver de meus desenhos”, respondeu sem titubear. Ao nos despedirmos, ele me estendeu a mão, agradecendo minha atenção, dizendo que eu era o primeiro a ver seu desenho com interesse. E convidou-me para retornar mais vezes.

O mergulho nas histórias de vida dos presos é um convite para entrar no centro da tormenta. Por isso, sempre que me deparo com jovens aprisionados, cujos nomes se referem aos de cantores que marcaram época, penso no que seus pais sonhavam ao fazer os registros de nascimento. Tenho plena convicção de que queriam para seus filhos uma vida de realizações, gentilezas, bondades, amor, felicidade.

No caso do John Lennon do Brasil a tristeza e dor eram maiores, pois o estado não oferecia condições mínimas de vida no cárcere e pouco se importava em apresentar um futuro menos cruel. Já o John Lennon da Inglaterra tinha um futuro com mais possibilidades, o estado propiciava estudo e trabalho e uma perspectiva de ressignificação e saída da margem. Em comum, porém, além do nome, havia o fato de ambos serem jovens, negros e pobres.

Há muitas semelhanças nas prisões do mundo. Em maior ou menor grau, quem está preso é sempre o mais vulnerabilizado, em geral, é jovem e, especialmente no Brasil, negro. E não há diferença nos sonhos e desejos. Aqueles dois Johnns Lennons me mostravam isso.

Assim, no meu último dia de trabalho antes das férias, com todas as cartas lidas e separadas, recados feitos para a assessoria, desliguei a luz do gabinete, fechei a porta e me fui, com um John Lennon preso em minha memória e outro prestes a se juntar a ele.

Ambos sonhadores, como eu.

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO


Tribuna recomenda!