Por Jeferson Miola

Quem representou o Brasil na sessão da Corte Internacional de Justiça [20/2] que julga a ilegalidade da ocupação do território palestino por colonos judeus não foi o embaixador do país na Holanda, Fernando Simas Magalhães, como seria normal, mas a conselheira Maria Clara Tusco, enviada de Brasília especificamente para a ocasião.

No mínimo, uma situação inusitada, que contrastou com o perfil de representação dos demais países, todos representados por níveis hierárquicos superiores das respectivas diplomacias.

Especulou-se, inicialmente, que a substituição significaria um recado a Simas Magalhães, ex-vice-chanceler bolsonarista que participou da reunião preparatória do golpe em 5 de julho de 2022.

Simas é um daqueles servidores públicos civis que participaram da reunião e que, por estarem presentes na cena do crime, testemunharam o crime e, mesmo assim, foram cúmplices, pois se omitiram diante do crime testemunhado.

Porém, menos de 24 horas depois de circular a versão do suposto “recado” a Simas, o site Metrópoles noticiou, a partir de fontes do Itamaraty –em off, como sempre–, que “a decisão de substituir Simas no discurso [na CIJ] visou ‘preservar’ o embaixador”.

Ainda de acordo com a reportagem, “a avaliação era de que sua fala pudesse expor o diplomata, tornando-o suscetível a mais fogo amigo”.

Fogo amigo? Como fogo amigo, se Simas é inimigo do governo atual, em relação ao qual participou de atos da conspiração para impedir que fosse eleito?

Enquanto a omissão do embaixador Simas e dos seus colegas não for apurada por meio da instauração de processo administrativo, não parece adequada a designação deles para representarem o Brasil no exterior. Menos ainda em missões de destaque na presente conjuntura mundial, como Haia.

O Itamaraty deveria adotar as mesmas providências da AGU e da Comissão de Ética Pública. De ofício, abriram processos para apurar a conduta de servidores públicos que participaram do encontro. A SECOM inclusive cancelou a designação do diplomata Comarci Nunes Filho para o grupo de trabalho da presidência brasileira no G20 depois da revelação de que ele participou da reunião golpista no Planalto.

O Itamaraty tem antecedentes problemáticos a esse respeito. Diplomatas que colaboraram com a ditadura militar, por exemplo, ficaram incólumes. Muitos acabaram promovidos na carreira.

Nenhum, nem mesmo aqueles que de algum modo colaboraram com a ditadura brasileira nos golpes militares nos países vizinhos e nos horrores da Operação Condor, foram investigados e punidos. Por outro lado, diplomatas considerados críticos dos desmandos, autoritarismos, horrores e corrupções da ditadura, foram cassados ou aposentados compulsoriamente.

No período recente, há o caso do diplomata Milton Rondó. Devido à condição biológica de não ser um diplomata “tipo sangue azul”, Rondó respondeu a dois processos administrativos disciplinares [PAD] e ações na Justiça por enviar telegrama às representações do Brasil no estrangeiro comunicando o golpe contra a presidente Dilma Rousseff.

Já o diplomata Eduardo Paes Saboia, de tradicional capitania hereditária diplomática e com plumagem tucana, teve melhor sorte. Em 2013, numa intromissão indevida em assuntos internos da política na Bolívia, Saboia atuou ativamente na fuga do senador oposicionista Roger Pinto Molina para o Brasil.

Uma falta gravíssima, que deveria ter custado a expulsão dele da carreira, a bem do interesse público. No entanto, em 2016 Saboia foi recompensado pelo usurpador Michel Temer com a promoção ao posto de embaixador, o mais alto da carreira diplomática. No atual governo, ocupa o importante cargo de Secretário do Itamaraty para a Ásia e o Pacífico.

Ernesto Araújo e a equipe de diplomatas que com ele foram responsáveis pela política externa mais desastrosa da história, que projetava transformar o Brasil num pária internacional, continuam incólumes.

Eles não são alvos de processos administrativos e judiciais. Não respondem pelos prejuízos causados ao Brasil, nem por terem exposto o país ao risco de guerra com a Venezuela, e tampouco pelos desvios na pandemia, que gerou a proposta de indiciamento de Ernesto Araújo e de outro diplomata, Roberto Goidanich, pela CPMI da COVID.

O Brasil é considerado um exemplo mundial no enfrentamento ao fascismo e à extrema-direita antidemocrática.

Neste contexto, é preciso que o Itamaraty mostre providências concretas que aperfeiçoem a lealdade da carreira diplomática brasileira com a legalidade, a probidade e a defesa do Estado de Direito, não com particularismos ideológicos. Mostrar, enfim, que no Itamaraty não há lugar para impunidades diplomáticas.

Assim como nas Forças Armadas, a tradição golpista, antidemocrática e conspiradora também é transmitida hereditariamente no Itamaraty. A certeza da impunidade serve como salvo-conduto para a repetição.

JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre. Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.

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