Por Lincoln Penna –
Karl Mannheim escreveu sobre ideologia e utopia.
Mas, não é exatamente sobre ele que me ocupo nessa reflexão, muito embora tome dele alguns ensinamentos. Trato aqui de uma relação, tal como o autor citado, mas aplicada à realidade que estamos vivendo presentemente.
Não há dúvidas de que essas duas concepções embalam as relações sociais não importa em que região do mundo, país ou regime político. Se a ideologia ao representar a visão de mundo do poder, logo da classe que o exerce, de modo a fomentar os valores que acredita e sustenta no intuito de torná-los comuns a todos; a utopia é precisamente o seu contraponto em potencial.
Em um sentido mais amplo, pode-se dizer que ideologia e utopia representam grosso modo o que se denomina de luta de classe, uma vez que confronta as verdades e narrativas de que detém os meios do exercício do poder em face daqueles que os contesta. Daí Mannheim, por exemplo, dizer que a utopia é ou pode vir a ser uma ideologia futura, tal como ocorreu com o Cristianismo no império romano, ou o marxismo nas sociedades socialistas soviéticas.
Indo para a realidade concreta do Brasil que se aproxima de mais um ano eleitoral com alta dose de tensão, ambiente no qual essas manifestações ideológicas e utópicas se irradiam com mais fervor, examinemos esse provável choque dos fenômenos mais comuns em uma sociedade informatizada como a nossa. E, ademais, com um grau de polarização em nível bem mais extremado se comparada com eleições passadas.
Para começar, deve-se situar o que corresponde à ideologia no real sentido do que chamamos de poder. Em face de um país sob a lógica do capital e daqueles seus mais significativos representantes localizados no mundo dos negócios, das finanças internacionais com suas ramificações no país, a fundar uma parceria com o atraso secular do velho arcaísmo irredutível desde os tempos da escravidão.
Essa modernização conservadora e reacionária, reativa a toda e qualquer tentativa de mudança é a base mais sólida da fonte ideológica que nos domina. Não fossem as alterações no quadro internacional em tempos de bons ventos a provocar readaptações e com elas algumas concessões no plano de uma minguada inclusão social, e o Brasil ainda respiraria com mais intensidade os ares da escravocracia.
Essa ideologia que conforma as nossas classes dominantes, tanto da vertente dos grandes proprietários rurais quanto dos grandes membros da banca financeira, além de irredutível a políticas distributivas. São terrivelmente refratários à perda de seus robustos interesses.
Qualquer que seja sua fração de classe mais moderna reproduz os mesmos valores que orientaram seus antecessores.
Do lado da utopia se encontram todos aqueles que têm objetivamente interesse em mudar de verdade esse funesto panorama secular. Nele contam-se quando muito as insurgências derivadas desse quadro de permanências estruturais, e todas movidas pelas utopias libertárias ou emancipacionistas, mais ou menos conseqüentes quanto aos seus objetivos finais.
No âmbito das diversas formas de utopias, cujas representações se situam em mais de um andar de nosso edifício social, pois tivemos desde a ralé mais marginal até as médias classes sociais com algum poder de organização e influência, as formas utópicas dessas oposições à ideologia dominante se não resultaram em bem sucedidos movimentos fizeram-se presentes na história das lutas políticas brasileiras.
Ao escrever três livros que formam uma espécie de trilogia da República, constituída pelos seus males de origem, as manifestações insurgentes ao longo de seu percurso e os golpes de estado recorrentes, sem ter essa preocupação acabei por centralizar em todos eles a relação ideologia e utopia. Ou seja, a justificativa legal das formas de dominação a encetar os seus dispositivos ideológicos, e as tentativas de reagir a essas situações. Neste caso, a provocar a reação da ideologia dominante sob a forma de golpes dentro da própria ordem com vistas a mantê-la inalterada.
Insisto nessa tecla porque os relatos históricos em geral não fazem alusão, pelo menos de forma mais enfática, a presença da ideologia e das utopias, que contra ela surgem no cenário político mais amplo da realidade brasileira.
Creio que o ano de 2022, em razão de um calendário eleitoral a apontar para uma disputa das mais acirrada, terá todas as possibilidades de se converter na mais explícita das contendas entre e ideologia e utopia. Afinal, a congregação de forças econômicas, financeiras e geopolíticas, para dizer apenas o essencial, reagirão com forte aparato político e ideológico para conter um revés eleitoral, mesmo que o responsável por esse resultado compor um leque de forças sem um mínimo programa de governança alternativo e de forma consistente.
A derrota eleitoral de Bolsonaro irá trazer de volta todo um arsenal de pressão jamais vista em matéria de oposição a governos que não contem com a ingerência do grande capital. Ao passo que as correntes conjugadas em torno da remoção de um governante que tem se revelado, entre outras coisas, subserviente ao novo imperialismo em sua fase neoliberal, tenderão a fazer valer mais do que o retorno aos valores caros à civilidade, porquanto as demandas se acumularam. Chegou o tempo de se exigir as mais radicais mudanças estruturais.
O cenário político e eleitoral talvez apresente uma situação antes nunca vista de modo tão transparente, entre a permanente coalizão até então no comando do país desde muito tempo e as recalcitrantes forças mirando utopias mudancistas. Com isso, a possibilidade de confrontos tenderá a se intensificar, fora o uso nas redes sociais de cargas ideológicas visando demonizar as forças que representam alternâncias de fato no domínio político.
Assim haverá radicalização de ambos os lados. A do continuísmo sem as máscaras de sempre e a boa e necessária radicalização em busca do tempo perdido. Tempo para ampliar os espaços de liberdade, cidadania e direitos sociais, sobretudo do punhado de brasileiros colocados na grande periferia de um país que tem tudo para abrigar seu povo e dar-lhes a dignidade que merece e o direito de usufruí-la.
Povoar de utopias o país do futuro e correr atrás de um presente inacabado sempre contido pelas classes dominantes, aferradas aos seus privilégios de origem e de ganho fácil a custas do povo trabalhador.
As próximas eleições serão a última oportunidade de uma solução pacífica.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Tribuna recomenda!
NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
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