Por Luiz Carlos Prestes Filho –
O ator João Angelo Labanca me apresentou ao Grande Othelo no Teatro João Caetano, na praça Tiradentes, Rio de Janeiro, no ano de 1983. Após rápidos cumprimentos, ele disse que teria duas coisas importantes para contar após da apresentação do espetáculo “Getúlio” de Dias Gomes. Eu tinha acabado de chegar ao Brasil depois de 13 anos de exílio na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Como estudei na faculdade de direção de filmes documentários para cinema e televisão, a imagem do Othelo era uma referência. Durante os estudos assisti filmes brasileiros disponíveis em Moscou e todos aqueles que os nossos cineastas apresentavam nos festivais soviéticos. Em vários dos quais o Othelo era protagonista. Inesquecível o momento quando ele, no palco, criou um caco teatral com o meu nome. Parecia que todos os presentes estavam olhando para mim! Ele ainda apontava para o meu lado, como que desejando me intimidar.
Aquele foi um primeiro encontro, depois viriam outros, sempre recheados de respeito. Diria até, formalidades. Apesar dele me chamar com frequência para reuniões a sua casa. Aliás, uma casa muito simples.
O Othelo insistiu para eu assistir shows de mulatas que apresentava no “Scala” e no “Plataforma”. Antes dos espetáculos ele fazia questão de me levar para os camarins e apresentar as artistas. Sempre lindíssimas!
Aconteceu, depois de um desses shows, fomos andando para a Gávea, em plena madrugada. Deixei ele na portaria do prédio onde morava com a Joséphine Hélene, na Rua Professor Manoel Ferreira. Na época eu residia com meus pais, na rua das Acácias. Qual foi a surpresa quando no dia seguinte soube que o amigo tinha brigado com a esposa, inclusive dado uma facada! Nessa ocasião conheci um outro Othelo. Aquele capaz de ser agressivo e duro, seco e bruto.
Quantas vezes, sentado no banco carona do carro, eu no volante, ele era taxativo com um fã que se aproximava feliz gritando: “Eu conheço você, eu conheço você!” O Othelo baixava o vidro devagar e dizia: “Você não me conhece, você me viu. Se você conhecesse o Grande Othelo, você nem se aproximaria!”
Aos poucos criei coragem e fui juntando papeis com poemas e letras de canções espalhados no apartamento dele, agora era na rua Siqueira Campos, em Copacabana. Muitos cuidadosamente transcritos pelo Nenna Camargo. Esse exercício me permitiu ouvir interessantíssimas histórias sobre a sua vida e trajetória artística. Como, por exemplo, sua mágoa de nunca citarem que ele foi coautor do samba “Bom dia Avenida”, com Herivelto Martins: “A ideia foi minha das primeiras palavras ‘vão acabar com a praça Onze’… foi uma tragédia a destruição dos lugares da Tia Ciata, aquela que fechou o corpo do samba, que deu abrigo para o Pixinguinha. Eu que vivi aquele lugar, fiquei triste com as demolições que foram feitas em nome do progresso. Coloque no livro essa minha parceria para marcar“.
Foi uma surpresa quando ele disse iria organizar a festa do meu aniversário de 30 anos, em 1989: “Será na casa do Ricardo Cravo Albin, na Urca. você vai adorar!”
Exatamente no dia 12 de julho aconteceu a festa, que para minha surpresa tinha um grupo musical, comida à vontade e muito chope. Foi animadíssima! Até que no final, quando uma centena convidados foi embora, inclusive muitos que eu não conhecia, o Othelo me chamou: “Gostou? Pois, agora você tem que pagar os músicos, o buffet e o chope que você está bebendo!” Resultado. Passei seis meses pagando os valores de uma festa, organizada por um dos maiores atores brasileiros, no “Largo da Mãe do Bispo”, como é conhecido aquele espaço junto à Pedra do Pão de Açúcar.
Durante alguns anos trabalhei na Pontífice Universidade Católica (PUC) do Rio do Janeiro. Lecionando o curso “Cinema e Literatura”, convidei o Othelo para conversar com os estudantes sobre a sua interpretação de Macunaíma no filme homônimo do diretor Joaquim Pedro de Andrade. Para a aula foi realizada ampla pesquisa, todos estudaram a obra em detalhes, leram o livro do Mário de Andrade, o roteiro cinematográfico e levantaram textos da crítica. Após as explanações, os presentes perguntaram para o ator sobre o trabalho que ele teve para construir a sua personagem. Queriam saber quantas vezes ele tinha lido o romance. Qual foi a surpresa quando ele respondeu: “Nunca li o livro ‘Macunaíma’, o Joaquim Pedro me contou sobre o que era o filme, eu fui fazendo“.
Esse era o Othelo, verdadeiro e espontâneo! Podia ter inventado histórias sobre suas leituras e interpretações literárias.
“Neste minuto de reflexão
Invoco à força de Ogum
À inteligência de Xangô
À candura de D. Oxum
E peço a Oxalá,
Ao povo da mata
Povo da encruzilhada
Aos pretos velhos, eu peço
Peço à luz e às trevas
Para que meus passos
A minha cabeça
E o meu coração
Meus braços, eu todo
Possa caminhar, seguro
Por este chão
Assim seja”
Depois de uma conversa sobre o poema “Invocação”, dedicado ao Herivelto Martins, acima transcrito, o Othelo me convidou para conhecer terreiros de umbanda e de candomblé. Foram algumas visitas onde ele falava sobre as divindades e a ancestralidade. Acostumado com o ouro, a grandiosidade e os rituais das catedrais ortodoxas russas, tive dificuldades para absorver tantas informações sobre lugares tão despojados. Mas percebi o quanto ele se identificava com as religiões de matriz africanas. O Othelo foi aquele que me apresentou esse universo. Explicou sobre a indumentária dos orixás e as comidas que eram servidas.
Propus a amiga artista plástica, Ana Eliza Frazão, recriar em miniatura, o quarto do Grande Othelo. Numa das visitas, levei ela. Animadíssimo ele doou para artista uma gravata antiga e botões de uma camisa esgarçada, tampas de garrafas de cerveja e cadarço de seus sapatos, lápis e canetas quebradas, grampos e pedaços de papéis rabiscados, caixa de papelão e parafusos. Assim, com todo esse arsenal, Ana Eliza realizou a mais fiel reprodução artística do último quarto vivido pelo Grande Othelo. Até hoje ela guarda essa preciosidade, feita integralmente de pequeninos objetos do próprio. Quem sabe, um dia Ana Eliza apresenta essa obra para um grande público?
Resolvi escrever essas linhas porque outro dia bateu uma saudade do amigo que, se vivo fosse, teria completado em 2020, 105 anos. Sim, Grande Othelo com “H”! Esse foi outro pedido que ele me fez:
“Luizinho, não esquece do ‘H’ no meu nome quando publicar o livro! Othelo com ‘H’!“
Mas quais foram as duas coisas que o Grande Othelo me contou após o espetáculo “Getúlio”? O seguinte: “Luizinho, em primeiro lugar diga para o seu pai – o grande Prestes – que eu me arrependo de uma vez não ter dado abrigo a ele, sei que precisava, estava fugindo da polícia. Não tive coragem. Hoje tenho vergonha. A segunda coisa é o seguinte. Menino, você está nesse momento na praça Tiradentes. Foi aqui que eu aprendi a dizer não. Essa foi uma das maiores coisas da minha vida. Aprender a dizer não!”
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015); No ano de 1993 organizou o livro de poesias do Grande Othelo “Bom Dia Manhã”, editora TOOPBOOKS.
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