Por Jeferson Miola –
O foco do escândalo de espionagem política centrado exclusivamente na ABIN encobre a conexão das cúpulas militares com o governo de Israel e com corporações israelenses das áreas de inteligência e fornecimento de armamentos e tecnologias de monitoramento.
A revelação do esquema de espionagem operado em escala industrial, que atingiu pelo menos 30 mil pessoas com o programa-espião FirstMile, parece ser apenas a ponta visível de uma estrutura ilegal e clandestina ainda mais abrangente e muito mais ameaçadora à democracia.
Este aparelho secreto de espionagem política escapou totalmente do controle do Congresso e dos órgãos de fiscalização interna e externa do Executivo. Foi empregado como recurso da facção no poder para espionar e vigiar inimigos políticos e até mesmo aliados.
É perfeitamente compreensível que a ABIN, a PF, as polícias civis e militares estaduais dotem seus sistemas de investigação com dispositivos de monitoramento. Desde, evidentemente, que seu uso se dê em conformidade com protocolos legais e autorizado pelo judiciário.
É incompreensível, porém, o uso de tais dispositivos pelas Forças Armadas, cuja missão de Defesa Nacional é incompatível com o controle e a vigilância de cidadãos e cidadãs – salvo, claro, na hipótese de compatriotas serem considerados “inimigos internos” e sujeitados ao controle de um Estado policialesco.
Enquanto nos distraímos com a guerra entre ABIN e PF, os militares mais uma vez ficam incólumes, embora tenham muito a esclarecer a esse respeito. Afinal, foi o Comando do Exército, e não a ABIN, o principal adquirente do programa-espião da empresa israelense.
Conforme levantamento no Portal da Transparência dos pagamentos feitos à Cognyte entre 2014 a 2023, dos R$ 127,6 milhões [valores nominais, não atualizados] pagos à empresa israelense, R$ 82,5 milhões se originaram no Comando do Exército, e R$ 6,5 milhões no Comando da Aeronáutica, o que totaliza R$ 89 milhões em pagamentos pelas Forças Armadas.
A ABIN pagou R$ 14,7 milhões à Cognyte – seis vezes menos que o Exército.
O auge das vendas da Cognyte do Brasil SA, cujo faturamento junto ao governo brasileiro saltou de R$ 2,6 milhões em 2014 para R$ 113,2 milhões com Temer e Bolsonaro, coincide com a atuação de Caio Santos Cruz, filho do general Santos Cruz, como representante da empresa israelense no Brasil.
Um lote significativo de compras foi realizado durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, comandada pelo general Braga Netto.
É evidente, portanto, que o Exército foi/é um parceiro comercial importante da Cognyte. Seja devido às compras diretas e para fins obscuros; seja através da ABIN, também controlada pelos militares, e para fins que se mostraram obscuros.
Muitas perguntas precisam ser respondidas.
Os R$ 127,6 milhões consumidos com a Cognyte são gastos parciais, uma pequena parte das contratações do Estado brasileiro em inteligência. Existem ainda inúmeros outros gastos que são sigilosos, não acessíveis no Portal da Transparência, além de outros, realizados junto a outras empresas do ramo, sobretudo israelenses, mas também estadunidenses e européias.
A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência [CCAI] do Congresso precisa examinar a fundo esta realidade. É fundamental se desbaratar o ecossistema clandestino e secreto, controlado pelos militares, que funciona em paralelo e à margem da legalidade.
É preciso se buscar respostas para muitas perguntas, como por exemplo:
- quais empresas, além da Cognyte; e quais produtos de monitoramento, além do FirstMile, foram comprados pelo governo brasileiro?;
- quais órgãos e instituições do Estado brasileiro realizaram tais aquisições?;
- qual a explicação para o Exército Brasileiro ser, de longe, o principal comprador de produtos da Cognyte?;
- qual uso o Exército faz do FirstMile? Quantos e quais alvos foram monitorados? Onde estão armazenados os dados coletados de brasileiros?;
- qual a razão para a Aeronáutica contratar a Cognyte? Como os produtos da empresa são usados pela Aeronáutica?;
- qual o papel desempenhado pelo general do Exército Gerson Menandro nas relações com empresas e autoridades governamentais israelenses durante o período que atuou como embaixador do Brasil em Israel, de outubro de 2020 a janeiro de 2023?
A espionagem política é uma grave ameaça à democracia. É crucial, por isso, identificar e desmontar os esquemas clandestinos e criminosos – muitos remanescentes da ditadura e ainda vigentes.
Diante de tantos sinais, seria imprudente não se considerar a hipótese de estarmos num estágio perigoso e avançado de reestruturação de uma perigosa Comunidade de Informações nos moldes do SNI, o Serviço Nacional de Informações da ditadura.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre. Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
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