Por José Carlos de Assis

Tornou-se consenso no mundo e no Brasil que, sem isolamento social, não será possível acabar com a crise do coronavírus. Entretanto, é literalmente impossível exigir o isolamento social a milhões de pessoas que não tem acesso a renda, seja por causa do desemprego crescente, seja porque atuam em atividades marginais e na informalidade.

Nos países ricos o problema é muito menor, ou sequer existe, pois a receita das famílias, mesmo as que se encontram numa menor escala de renda , suporta bem as restrições do confinamento sem necessidade de ajuda do governo. Só nos últimos degraus da escala social essa ajuda é necessária, mas como são em número menor, o Governo pode apoiar facilmente.

A política do Governo Federal no caso específico dos benefícios financeiros para os mais pobres é cruel, insuficiente e contraproducente. Cruel, porque deixa milhões de pessoas de fora dos benefícios, dado que, por sua condição de extrema pobreza ou indigência, não conseguem cumprir as exigências burocráticas para acesso ao programa.

Micro e pequenos empresários foram levados a situações de extrema pobreza, próximos ou já em situação de fome, porque essas e outras exigências burocráticas foram de tal ordem que mais de metade deles não pode cumpri-las e não acessam o benefício. Entretanto, são milhões, e empregam dezenas de milhões, todos virtualmente à míngua.

Por tudo isso, o sistema de benefícios é claramente insuficiente. E mais do que isso, a pobreza brasileira, como mostram as estatísticas, certamente não contribui para que se cumpram regras do isolamento social. De fato, tem sido inferior a 50% e, portanto, representa um risco não só para os pobres, mas para toda a população, exceto os ricos confinados em suas casas.

A todos esses aspectos se superpõe a obsessão brasileira de décadas contra a corrupção. A imprensa denuncia que assassinos, marginais, ladrões desviam benefícios a seu favor. É como se, num universo de milhões de pessoas, não houvesse crimes. A conduta correta seria pagar a todos sem burocracia, porque o diabo não é menos potencial transmissor do que um anjo. O correto, portanto, seria pagar sem burocracia a primeira parcela, e controlar a partir da segunda, usando o próprio primeiro cadastro como meio de controle.

Os recursos destinados ao financiamento do programa por Paulo Guedes são insignificantes. Tendo se apresentado como um fenômeno de circo na infame reunião ministerial de abril, o ministro abertamente sustenta a necessidade de deixar de lado os pobres, pessoas e empresas, para atender os ricos. Se não tivesse sido gravado, ninguém acreditaria nisso.

Entretanto, não fosse a terrível desgraça para o país de ter um Bolsonaro como presidente, teríamos saídas relativamente fáceis para o financiamento da luta contra o vírus. Só a estupidez neoliberal que não vê isso. Vou fazer adiante contas simples para mostrar que é perfeitamente possível conciliar confinamento com retomada da economia.

Somos cerca de 210 milhões de brasileiras e brasileiros. Se o dinheiro dado a cada um dos beneficiários atuais, 600 reais, fosse estendido a todo mundo, o Tesouro gastaria 126 bilhões por mês e 378 bilhões em três anos. Com a liberação desses recursos, o Governo teria moral para exigir que todos ficassem em casa. A economia começaria a retomar. É possível que no fim de três meses a epidemia teria desaparecido e a economia ganharia plena velocidade. Até lá, não haveria risco inflacionário por causa da recessão. Depois disso, como o investimento público e privado teria aumentado a capacidade produtiva, o risco continuaria baixo, até que se esbarrasse na capacidade produtiva dinâmica.

Essa é uma conta no verso do envelope, como dizem os americanos. Uma conta mais refinada, levando a conclusões semelhantes, foi feita pelos estudantes e professores da UFMG. Os neoliberais dizem que não pode, porque é muito dinheiro, porque vai quebrar o Tesouro. Hipócritas. Essa quantia é inferior ao que o governo paga de juros por ano aos banqueiros.

Sim, porque o estoque da dívida, de mais de 4 trilhões de reais, é uma farsa. Nunca se cumpriu o mandato constitucional de submetê-la a uma auditoria. A rigor, nem precisa disso. Bastaria que se eliminasse a remuneração indecente das chamadas operações compromissadas para liquidar com os exagerados privilégios dos bancos na economia brasileira.

Essa é uma questão que examinaremos depois da vitória sobre o coronavírus. Por enquanto, confiando em que Jair Messias Bolsonaro seja rapidamente deposto sem esperar as demoradas maquinações de um impeachment, basta recolocar o foco na epidemia. Ninguém no Brasil estará isento de risco do vírus enquanto a política oficial não for liquidada.

Quanto a Bolsonaro, se o Supremo Tribunal Federal atuar de acordo com os desejos da maioria, e seguindo rigorosos cânones constitucionais, não precisamos de passar por mais um penoso processo de impeachment no Brasil. Ele e Mourão podem ser depostos por crime eleitoral, já que o próprio Bolsonaro disse que houve fraude na sua eleição em 2018.

Em sua soberba, Bolsonaro disse que está “no limite”. Não explicou o que queria dizer com isso. O filho Eduardo também não explicou a bravata que o está levando à barra dos tribunais. O primeiro filho está sob inquérito e o terceiro é alvo da investigação sobre fake news. Assim, o limite de Bolsonaro é a beira do abismo. Os quatro, unidos, deram um passo adiante.

Enquanto o presidente do Brasil e sua família convocam o mundo para uma cruzada de ódio, Papa Francisco, praticamente o único líder mundial respeitado unanimemente por sua inequívoca dedicação aos pobres e acerbas condenações da infame exploração deles pelo capital, reúne, neste 29 de maio, uma conexão mundial de 40 santuários em todo o mundo para orar por homens e mulheres, sem discriminação de raça ou religiões.

Simbolicamente, e de forma paralela à luta contra a epidemia, o Papa dos pobres explora a simbologia religiosa do Vaticano na aproximação do Leste com o Oeste. Para isso aceita o presente de uma estátua do maior líder religioso oriental integrado nessa causa séculos atrás, ao mesmo tempo em que manifesta profundo respeito por tradições religiosas nacionais, integrando de forma harmoniosa o local com o internacional.

É essa dimensão física e espiritual que dá ao Papa um sentido dialético no confronto com líderes negativistas como Bolsonaro e o fundamentalista e bilionário Steven Bannon,

conselheiro estratégico de Donald Trump que deixou o governo com o propósito explícito de “liquidar” o Papa e a Igreja Católica. No momento em que o mundo enfrenta a pandemia, nem todo o dinheiro de Bannon compra o amor e a esperança que o Papa Francisco confere.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.