Por Carlos Mariano –
Sem os quatro dias para zombar de quem nos impede de sorrir o ano todo, ficamos apenas com o Carnaval dos malandros do Planalto.
No fim da década de 1970, o antropólogo Roberto da Matta, lançou “Carnavais, Malandros e Heróis”, primeiro livro que se debruçava sobre o dilema do carnaval na sociedade brasileira. E uma das lições deixadas pela obra de Da Matta é que a intelectualidade brasileira deve estar mais atenta às relações sociais praticadas no espaço social do mundo do carnaval. Da Matta nos ensinou no seu clássico que os “malandros” do carnaval, durante o processo da festa e no próprio ritual carnavalesco, enfrentam e renovam o tempo da rotina do dia a dia, dando-nos, assim, uma nova realidade sociopolítica cujos novos personagens surgem e negociam novas formas de viver, criando uma realidade mais aberta e surpreendente. Um sopro de vida, criando brechas no insistente tempo cíclico normativo das leis do Estado.
A sociedade brasileira, tão rica em leis e decretos, assiste a um “carnaval político” o ano inteiro, deixando o povo cada vez mais desassistido. Neste ano, em virtude da pandemia da Covid-19, a situação do povo pobre fica ainda mais desesperadora e sem alento, vítima também do desgoverno do inominável, que com sua necropolítica escolhe quem vai viver ou morrer.
O nosso querido Carnaval, que traria um sopro de alento, uma folga à tortura diária, não haverá. A nossa chance de todos os anos, de lotarmos as ruas para debocharmos e protestarmos, contra tudo e contra a todos, fazendo uma catarse social coletiva, foi cancelada.
Ainda aprendendo com os ensinamentos de Da Matta, pensando o Carnaval como um momento ímpar de inversão da realidade, quando nós temos quatro dias para sorrir e zombar de quem nos impede de sorrir o ano todo, os inimigos invisíveis do mercado e os de carne e osso de Brasília, ficamos apenas com o Carnaval dos malandros do Planalto.
Imaginar o Brasil sem seu Carnaval é deixar esse país extraordinário ainda mais de cabeça para baixo. O Carnaval nos mostrou em séculos de existência que ele está longe de ser o ópio do povo, como pensavam alguns intelectuais de esquerda na década de 1970. “Carnavais, Malandros e Heróis” nos mostrou outra faceta do mundo social brasileiro. A faceta da rua, local onde se realiza a inversão carnavalesca. Nesse palco nasce todo ano outros brasis imprevisíveis, com paixões, protestos que deixam o ambíguo como instrumento de vida. Esse Brasil da rua vem através do rito se opor ao Brasil da casa. A casa onde nasceu o conservadorismo patriarcal, machista e hierárquico.
É o contraditório dessa sociedade proveniente do lar dos bens nascidos, que o Carnaval da rua vem subverter todos os anos, com seus blocos, bate-bolas e as nossas escolas de samba. Num ano que não poderemos viver o Carnaval, estaremos momentaneamente mortos.
Mas, como dizia Mikhail Bakhtin: “o carnaval é a segunda vida do povo” e como tal renascerá em 2022 de uma longa quarta-feira de cinzas para continuar sendo o avesso da monotonia e da ordem.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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