Por Lincoln Penna –

A família é um bem inestimável, quando a entendemos como uma comunhão afetiva não importando a sua estrutura, composição e as relações entre seus membros. Muito embora o caráter monogâmico do eixo central da constituição do núcleo familiar prevaleça hoje, nem sempre foi assim, se considerarmos as formas originárias da composição familiar.

Ao aludir a Lewis Morgan, Friedrich Engels, em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, tratou dessa questão, e deu curso ao estudo das estruturas familiares. Entender a evolução da família ao longo do tempo, em função da forma de organização econômica, social e política historicamente desenvolvida, são elementos que merecem no mínimo uma reflexão.

Nos primórdios da organização comunal a família era um conglomerado de interesses comuns, dissolvida na comunidade de interesse, não havendo senão quando muito uma divisão sexual do trabalho. Com a desintegração dessas formas comunitárias e o progressivo aparecimento da divisão social do trabalho, e em seguida das primeiras sociedades de classes, ocorreria a dissolução desses laços de confraternização. Desintegrada essa cooperação se constituiu numa primeira e incipiente forma de diferenciação, que evoluiria para outras mais diferenciadas.

É bom reportar as nossas origens porque se tem falado muito em família como berço originário de nossas existências. E é verdade, só que não a família descrita e louvada pelos ideólogos da regressão, do reacionarismo. Esta tomou lugar nas ordens sociais já desiguais porque o trabalho coletivo e partilhado foi substituído por uma divisão mais robusta no que diz respeito à desigualdade, dando lugar às sociedades de classes bem definidas entre os que detinham e detém os meios de produção e os que são explorados na venda de sua força de trabalho.

O poder como meta e o que modernamente passou a ser representado sob a forma de dinheiro, moldaram uma cultura política cujo eixo têm sido a busca incessante por esses dois bens. Com isso, a humanidade passaria já na vigência do capitalismo a se empenhar em alcançar essa falsa prosperidade, a da riqueza material, que costuma dar uma representação de opulência a quem desfruta da posse e da acumulação de capital.

Assim, a ideologia, que é sempre aquela que atende às representações do poder em razão delas reproduzirem os valores das classes dominantes, age no sentido de padronizar o comportamento de todos os que se encontram a ela submetidos conscientes ou não. E o discurso que toma o modelo paternalista e monogâmico formado fundamentalmente por gêneros diferentes, tem se imposto não de maneira natural, mas reafirmado por temer que outras formas venham a se constituir, como está acontecendo a despeito da enxurrada de mensagens contrárias e profundamente preconceituosas.

No Brasil, hoje governado pela tropa de choque da bestialidade, o culto à família é falso porque está construído pela reação à própria evolução da humanidade na direção de sua felicidade.

E esta não se reduz à memória de bons tempos. Memória é o fermento para conquistas que venham a traduzir novos impulsos e a atender à própria evolução do ser humano. O passado é e será sempre uma referência, mas ele não pode ser o modelo do futuro absoluto senão estaremos tão somente reproduzindo a vida. É pouco para quem corre na direção da utopia da fraternidade universal.

Contra o retrocesso que nada tem a ver com as boas tradições, é que se batem as forças progressistas. A família continuará a ser uma instituição como foi ao longo do tempo. Procurar usá-la para efeitos propagandísticos com vistas a combater os fantasmas do comunismo e os supostos apologistas da desagregação da família é um exercício infrutífero. Só atende a malta da ignorância a sustentar tais ideólogos que estão distantes do mundo em permanente transformação.

A grande família é aquela que agrega, se irmana em prol da boa vizinhança, a se expandir nas nações e no mundo integrado pela busca do bem-estar coletivo. Na paz social e sem desigualdades a humanidade saberá absorver as novas modalidades do sentido da familiaridade, mesmo mantendo o seu núcleo original, que a rigor em nada se altera fundamentalmente, mesmo com os novos experimentos surgidos pelo amor entre as pessoas. Rumo à felicidade cúmplice, este é o valor universal de quem aposta nas mudanças que venham para o bem.

Certamente o fim das ideologias virá com o desaparecimento das sociedades de classes. Vai demorar a acontecer. Afinal, a atual ideologia burguesa é poderosa e insinuante, capaz de se manter ainda por algum tempo.

Mas a história da humanidade é muito mais poderosa para um dia reverter esse mal que assola a todos e impede que novos talentos surjam para o nosso deleite.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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