Por Roberto Amaral

Estamos diante do pior dos governos que já assolaram a República.

Qualquer que seja o ponto de vista da análise, forçoso é reconhecer: estamos diante do pior dos governos que já assolaram esta república. Pior mesmo que os governos dos generais Hermes da Fonseca e João Baptista Figueiredo (Este, por exemplo, teve como chanceler o embaixador Saraiva Guerreiro, que difere do atual como o homo sapiens difere de seu antecessor, o homem de Neanderthal).

A diferença do governo do capitão ante os antecessores é que o desastre, desta feita, não se deve à inépcia de seus condutores, mas, ao contrário, resulta de uma franca e planejada opção: a de pôr por terra o projeto (que vem dos militares e civis de 1930) de desenvolver o país mediante sua industrialização. Isso porque, até para ter forças armadas dignas dessa denominação, precisávamos de desenvolvimento industrial, o que terminou por unir Getúlio Vargas e generais reacionários como Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra.

O sonho de um desenvolvimento autônomo, fenece hoje na forma de capitalismo subdesenvolvido e dependente. Sua grande cova é cavada por generais comissionados, uma burguesia sem compromissos com o país, um sistema financeiro desapartado da produção, uma coorte política a serviço da casa-grande, permanentemente contra as reformas sociais e o progresso que favoreça as grandes massas.

O desastre de nossos dias é amplo, geral e irrestrito: subordinação da política de defesa aos interesses da geopolítica dos EUA, desindustrialização, desemprego, falência de médias, pequenas e microempresas, desinvestimento, fuga de capitais, recorde de mortes ante à pandemia, destruição da Amazônia e do pantanal, por fim, depressão econômica, de par com a desmontagem do Estado e falência das políticas públicas, anunciadoras de um futuro imediato de mais concentração de renda e fome. Ademais de uma corrupção larvar que envolve a família presidencial e suas relações suspeitíssimas com as milícias que controlam o crime organizado no Rio de Janeiro.

E, no entanto, dizem as pesquisas, o capitão vê crescer sua popularidade, para espanto da oposição liberal, esquecida de seu recente papel como linha auxiliar das forças mais atrasadas da política brasileira, que emerge já nas eleições de 2014  para tomar conta da cena a partir da deposição da presidente Dilma.

É preciso lembrar aos esquecidos e informar aos que chegaram depois que a ascensão do bolsonarismo se fez nas pegadas de longa e intensa campanha da grande imprensa visando a desmoralizar a política, os partidos e os políticos, pois tudo se justificava ante o propósito maior de deter o lulismo (simbolizando o que se supunha ser a ascensão das esquerdas), eleito, a um só tempo, pelos liberais e pela direita, como o inimigo comum a ser destroçado. Os partidos ditos de centro e os ditos liberais, como o autoproclamado partido socialdemocrata (e lideranças irresponsáveis como Aécio Neves), não tiveram dúvidas em abraçar o projeto da direita, por mais reacionário, na velha suposição de que ela seria sua aliada na destruição da esquerda, que não haviam conseguido derrotar.  Abrindo caminho para uma extrema-direita subestimada, terminaram por construir o monstro que os devoraria.  O que estamos a colher são seus frutos, pois, como todos sabem, na política, tanto quanto na história, não há almoço grátis.

Nesse jogo sujo ninguém é inocente e os liberais e os socialdemocratas, não podem fugir à sua responsabilidade histórica, embora não estejam sós nesse imbróglio.

Ainda hoje os mesmos jornais que fazem restrições formais ao capitão e aos maus modos de sua grei  são unânimes na defesa da política neoliberal, da qual se afastam os países desenvolvidos, e não se cansam de, a qualquer pretexto, seja mesmo só para amenizar a crítica ao capitão, bater no PT, em Lula, em Dilma e no legado de seus governos, que, para eles, mesmo em face da realidade vivida, nada tem de apreciável. Dessa cantilena não se afastam seus colunistas, mesmo os mais críticos do bolsonarismo, que ainda entoam loas ao lavajatismo, à destruição do Estado brasileiro, e elegem como marcos de referência política figuras torpes como a do ex-juiz Moro. Todas as tintas são postas na paleta para a defesa do ex-Posto Ipiranga e de sua política de fortalecimento do capital financeiro especulativo.

Essa oposição mais confunde do que ajuda a construir uma opinião pública de resistência nacional, pois é disso que se trata. E, nas circunstâncias, uma sociedade bem informada é algo muito relevante, pois os partidos fracassaram no dever de constituir uma oposição orgânica, e o movimento social padece de lideranças e força mobilizadora, quando ainda mais difíceis são as condições de organização impostas pelo enfrentamento da pandemia.  Noutras palavras – e eis o que pretendo ressaltar–,  o capitão corre só e, enquanto correr só, será imbatível, como a tartaruga da lenda que derrotou o coelho dorminhoco. Apesar da clareza da realidade, que exigia unidade na ação, mesmo episódica, os diversos partidos de oposição – mais uma vez liderados pela corporação hegemônica – optaram pelo voo solo nessas eleições, e, em muitos casos, pela disputa fraticida na já estreita franja do eleitorado de esquerda. A política maior, de combate ao sistema e ao bolsonarismo, fica para depois.

Com dados de hoje, em apenas duas capitais (Porto Alegre e Belém) os candidato de centro-esquerda têm condições de ir para o segundo turno e vencer. Nessas duas cidades foram constituídas amplas coligações. Alguma lição a colher?

As pretensões do PT em São Paulo e no Rio de Janeiro são, ainda, um mistério. Em 2018 decidiu não disputar o pleito nos dois principais estados da federação, e este ano, na capital paulista, lança candidato que não passa de 1% das intenções de votos. Nem disputa a prefeitura nem faz proselitismo político, as duas oportunidades ensejadas pelo processo eleitoral.

A fragilidade de nossa participação nessas eleições é o reflexo de nossa fragilidade orgânica e programática no enfrentamento ao avanço ideológico da extrema-direita e da consolidação do governo bolsonaro, que tão bem a representa. Não basta, pois, chegar à conclusão óbvia de que o capitão se recupera na aprovação de seu governo: é preciso ir a fundo na busca de suas causas, que residem, majoritariamente, na fragilidade da oposição que lhe oferecemos. O fato objetivo é que, hoje, o capitão não tem adversário, e, livre do embate, corre isolado em raia única. De igual forma, o avanço da extrema-direita, inclusive em áreas que se diriam reservas da esquerda, como núcleos proletários, também resulta da inexistência do confronto ideológico. A máquina de manipulação ideológica da direita — desde seus aparelhos clássicos, como a grande mídia, agora fortalecida pelos instrumentos das redes sociais e as pregações do pentecostalismo primitivo –, faz o seu trabalho, sistemático, permanente. A nenhum desses fenômenos a esquerda conseguiu construir resposta à altura do desafio. Também neste campo a extrema-direita avança porque está só (seu discurso não esbarra no contraditório), nada obstante a resistência isolada de uma série de blogs e articulistas que, como maquis, combatem como podem o grande invasor.

Essa fragilidade, orgânica, possui uma gama de explicações e não cabe aqui estabelecer seu inventário, mas destacar pelo menos dois pontos, e um deles, talvez o fulcral, é a crise do Partido dos Trabalhadores, que não nasce com a deposição de Dilma Rousseff, mas que vem de bem lá trás (mesmo de antes do “mensalão”), com reflexos óbvios  na dificuldade de sua direção compreender o processo histórico e nele situar seu  papel, e a partir dele o das forças populares, sobre as quais exerce, ainda, inquestionável hegemonia. A crise do PT detonou a crise dos demais partidos e a crise geral  e estrutural do sindicalismo e dos movimentos sociais, bloqueando a construção de alternativas.

A meada que vinha remoendo as entranhas do PT se agravou, e não poderia ser de outra maneira, com o julgamento,  condenação e prisão arbitrárias  e ilegais do ex-presidente Lula, pondo-o fora da cena política.

O baque sobre as demais forças populares não foi menor, pois a liderança de Lula sempre se estendeu a todo o campo progressista. Ao invés de termos o líder em campo, comandando suas tropas, as tropas saíram de campo para defender o líder, posto fora da contenda, deixando livre o cenário para a ação do adversário.

Lamentavelmente, até aqui não se recuperaram nem o PT nem sua grande liderança, em cuja lucidez política e capacidade de luta as forças progressistas brasileiras depositaram todas as suas esperanças.

Mas é preciso agir, enquanto esperamos.


ROBERTO AMARAL – Escritor, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.