Por Ricardo Cravo Albin –
“O maior escândalo dos escândalos é quando nos habituamos a ele.” (Simone de Beauvoir)
Escrevo horas antes deste sete de setembro, o único alimentado por estranhos desígnios que lhe determinaram a fixação principal em algumas capitais como Rio, São Paulo e Brasília. Seriam elas admitidas como palcos preferenciais para o absoluto ineditismo de o Presidente da República projetar comícios a seu favor e reunir simpatizantes e grupos de apoiadores, como, diz-se, os caminhoneiros, cujo líder é o suspeitíssimo (até pelo nome novelesco) Zé Trovão.
Como para emoldurar tamanho disparate, o país ainda comenta em qualquer boteco onde se reúnam mais de duas pessoas o incidente que paralisou o jogo Brasil-Argentina, já valendo para a Copa do Catar.
Ousaria tratar ambos os eventos acima como escândalos de um país a viver uma realidade trepidante, mais que isso, preocupante, muito preocupante. Surreal.
Devo observar que o incidente no estádio do Corinthians repercutiu pelo mundo inteiro, com a imprensa internacional, ao menos os setores mais qualificados, em defesa de que as definições sanitárias ante a pandemia devem ser mesmo rígidas em qualquer país acometido pela Peste, em especial aonde morreram 600 mil pessoas, como no Brasil. E obrigatoriamente acatadas por todos, turistas ou não.
O que houve? A Anvisa foi minuciosa ao apurar a transgressão dos quatro jogadores que chegaram ao Brasil procedentes do Reino Unido. Que, além de mentirem e se recusarem a assinar qualquer intimação de quarentena obrigatória, infligiram as leis brasileiras, ao por em risco a vida de inocentes. E a saúde pública, no seu geral.
Ao ouvir comentários em emissoras portenhas naquela noite, confesso que me indignaram gracinhas anti-Brasil como …”Bolsonaro abandonou seu país a própria sorte e agora ousa descontar seus erros em nossos jogadores. Como se fôssemos também macaquitos”. Nada mais preconceituoso e insultuoso para os nossos brios. O que alimenta perigosamente aquilo que julgava ultrapassado, o quase ridículo “Argentina e Brasil não se bicam”!
De fato, cabe acrescentar que o Presidente, mesmo reconhecido como amante do esporte bretão, teve atitude de estadista ao agir com discrição e não metendo a colher em assunto prestes a se converter em incidente diplomático. Ainda bem.
O mesmo não posso me referir ao ineditismo de sua participação neste dia que amanhece daqui há pouco. Onde estão a assessoria palaciana ou mesmo seus consultores particulares para não terem dissuadido o capitão a misturar alhos com bugalhos.
Creio que Bolsonaro foi longe demais ao incentivar sua tropa de choque a se imiscuir logo em data considerada quase um símbolo nacional para tantas gerações. Um patriota (palavra antiguinha, mas de resgate necessário) que absorve estímulos de amor a seu país por décadas a fio não gostará de assistir a essa intromissão indébita. Imagino que tantos coronéis e generais, amigos meus de décadas, nutrirão o mesmo sentimento que exponho aqui.
A inquietação cresce quando o Presidente em pessoa não só faz publicamente o chamamento de seus votantes em explícito apoio eleitoral. Mas também ergue seu alegórico tridente em fogo para espetar nas instituições, o STF e o Congresso Nacional com preferência. Por muito menos João Goulart foi deposto depois do Comício da Central e do apoio dos marinheiros da Marinha em 1964.
O que afrontará mais a cúpula militar, guardiã legítima da disciplina e respeito aos símbolos nacionais, do que delegações da soldadesca das PMs e dos bombeiros estaduais? Ou ainda caminhoneiros e invasores de terras indígenas? Especialmente quando agregadas a fanáticos de ideologias exóticas? Imaginemos a mudança radical e intolerável para nossos hábitos cívicos de décadas: As Forças Armadas substituídas por um bando de estranhos a invadir ou gritar palavras de ordem contra autoridades e prédios do STF e do Congresso Nacional. Observo que Bolsonaro aliciou tropas militares alternativas dos estados, sendo o primeiro Presidente do Brasil a proceder deste modo para fins exclusivamente eleitorais. E por que as Forças Armadas verdadeiras se calam? Seria a hora exata para uma palavra esclarecedora do nosso Vice-Presidente Mourão, um substituto eventual certamente confiável.
De fato, as últimas declarações do Capitão são constrangedoras – “essas duas pessoas (!) do STF não podem dar outro rumo ao Brasil. E o recado de vocês, povo brasileiro, na próxima terça-feira será um ultimato para essas duas pessoas (os ministros Barroso e Moraes, claríssimo) se curvarem (!) à Constituição (!)”.
Posteriormente, o Presidente asseverou que – “após os atos (!) de sete de setembro eles verão que estão no caminho errado (!). E eles saberão se redimir (!)”.
Todas essas exclamações inseridas em certas palavras correspondem a uma talvez ingênua inquietação minha. Como a tentar decifrar a que ameaças e a que atos o Presidente se refere. Golpe, anuncio de ditadura, derrubada do estado de direito? Todos os jornais temem que isso aconteça.
Para mim, o que espero, se limitará a alaridos de gritos e refrãos. Jamais atos concretos de insurreição.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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