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Eleições municipais: anatomia de uma queda – por Roberto Amaral
Colunistas, Política

Eleições municipais: anatomia de uma queda – por Roberto Amaral

Por Roberto Amaral

“As eleições gerais não medem corretamente a força política dos partidos por causa das várias influências burguesas, mas servem como um censo para indicar como as forças populares estão se desenvolvendo.” (Carta de Friedrich Engels a August Bebel, 28 de outubro de 1884).

O processo eleitoral não deve ser encarado como fenômeno político isolado: como todo fato social, tem causas e, por seu turno, gera consequências. Cada eleição é única, assevera o Conselheiro Acácio de plantão, e as dinâmicas locais e nacional são distintas entre si; mas é certo que o controle de prefeituras e câmaras municipais pela direita, em todos os seus matizes, dos hidrófobos em ascensão aos fisiológicos de sempre, produzirá efeitos que se farão sentir nas eleições presidenciais de 2026, cada vez mais próximas. E na eleição do próximo Congresso.

É desnecessário pôr de manifesto o cenário do recesso ideológico-político da esquerda brasileira, de que decorre, de modo natural e inequívoco, o desastre eleitoral. Mas cabe delinear o quadro da clamorosa derrota deste ano: recuo no Nordeste (destacando-se a derrota contundente em Salvador, por W.O.); em Minas Gerais (destacando-se o desastre em Belo Horizonte); e consolidação da direita nos três estados do Sul. Desastre eleitoral no ABC paulista e nas grandes concentrações eleitorais do interior de SP, como Campinas e Araraquara. Na capital paulista, onde obtivemos nosso mais importante desempenho (o segundo turno com Guilherme Boulos) — maior cidade da América do Sul, maior concentração industrial, cultural e tecnológica, onde Lula venceu em 2022 — nada menos do que 60% do eleitorado votaram com as duas facções da extrema-direita.

Há dados positivos a celebrar, como o avanço da representação indígena e quilombola, e o fato de o MST haver logrado, de forma inédita, eleger 133 candidaturas à vereança e ao executivo municipal, sobretudo no interior do Brasil profundo, distribuídas por 19 estados. Mas esses avanços alvissareiros não alteram o quadro geral.

Os números eleitorais de 6 de outubro são ponto de referência para uma tentativa de investigação das transformações político-ideológicas que se operam em nosso país; verdadeiros movimentos tectônicos muitas vezes despercebidos na superfície, o que induz o espectador desatento a confundir as aparências com a essência dos fenômenos. Exemplar da incapacidade de os sismógrafos sociais registrarem essas mudanças foi a incapacidade dos ditos quadros políticos de compreender o significado dos movimentos de contestação popular – as chamadas “jornadas de junho” de 2013 – que tomaram as principais cidades do país, anunciando as raízes de um fenômeno que nos recusávamos a reconhecer.

Os números deste pleito, para além de indicador de um pronunciamento eleitoral, devem ser colhidos como corpo de análise do recente e rápido e profundo processo social e político brasileiro. A essência (de fácil identificação) é essa: o país marcha para a direita, e não é de hoje. O exercício é procurar explicações, e, a partir delas, engendrar o enfrentamento. Como não estamos em face do acaso, nem muito menos da ingerência dos deuses do Olimpo, precisamos identificar como as forças populares estão se desenvolvendo entre nós, para, a partir daí, podermos (porque devemos) rever estratégia e tática e, portanto, nosso discurso.

O ponto de partida é que a crise é nossa. E um indicador, trágico, inquietante, é o fato de a capacidade de mobilização popular da direita superar a da esquerda, e avançar, nas pegadas do recesso de nossa militância, na organização popular nas periferias, junto a trabalhadores e aos deserdados do capitalismo.

Nada obstante a crise do capitalismo financeiro-monopolista, em guerra, que em breve nos atingirá a todos, e os impactos do avanço tecnológico nas relações de produção, as teses socialistas vêm, gradativamente, perdendo espaço junto às grandes massas. A direita protofascista conseguiu, nessas últimas eleições, o prodígio de, em pleno século XXI, ressuscitar o anticomunismo, e a Faria Lima elegeu o pleno emprego como ameaça ao “equilíbrio fiscal”, o mantra dos economistas a serviço da especulação financeira. O cantochão da velha imprensa.

Não foi por falta de avisos que tropeçamos no abismo.

Repetindo a incompetência de 2013, continuamos, nos anos seguintes, nos negando a reconhecer as transformações político-ideológicas que caminhavam na contramão de nossas propostas. Nos recusámos a ver em 2014 o significado das gritantes dificuldades da reeleição de Dilma Rousseff, ameaçada pelo avanço de uma candidatura e uma campanha de direita, já indicando os novos rumos da socialdemocracia. A tese: Dilma foi deposta não exatamente por não haver conseguido amealhar 247 votos no Congresso, mas porque, nas ruas, não encontramos apoio popular para alterar a correlação de forças congressual adversa. A eleição de Jair Bolsonaro, seu governo predador e a difícil campanha de 2022 são desdobramentos naturais desse refluxo.

Resistimos a reconhecer esses fatos e resistimos a procurar entendê-los. Demos o desastre como favas contadas, e assim, de uma forma ou de outra, terminamos por facilitar a progressão da direita hidrófoba.

Apressadamente festejamos a dificílima derrota da proposta protofascista em 2022 como uma vitória da esquerda. Reação de último fôlego da democracia, a contenção do golpe continuado decorreu da derradeira carta na manga, a oportuna composição da centro-esquerda, liderada por Lula, com setores da direita, com forças políticas conservadoras e liberais – sempre adversárias da esquerda, mas que, naquele ensejo, temiam a proposta exacerbadamente autoritária e destrutiva. Os números justificariam  a angústia vivida e homologam a composição da frente-ampla, mas não forneceram a Lula senha para salvar-se do labirinto em que se encontra atrapado.

O espelho do Brasil real fez-se representar no atual Congresso, eleito naquelas mesmas eleições, o mais reacionário de quantos se contam na República. O resto é história sabida, com a emergência da ditadura parlamentar do Centrão, liderado pelo jagunço de Alagoas.

O resultado das eleições de 2022, não sendo nem um ponto de partida nem de chegada, é, porém, o indicador do que poderão ser as eleições de 2026, considerando: a) o quanto nelas estão investindo as direitas (a direita negocista e a direita troglodita), aguerridas, agressivas, organizadas, e temo dizer, competentes, pois armadas de objetivo claro e catalizador, qual seja, a tomada do poder, como possível, pela via eleitoral (como em 2018) ou pelo golpe de mão, como a frustrada intentona de janeiro de 2023; e b) quanto têm recuado nossas esquerdas, seja do ponto de vista ideológico, seja do ponto de vista da organização, seja do ponto de vista estratégico.

O ponto crucial é sempre o desvio ideológico.

Paralisado, condicionado pela maioria reacionária do Congresso, nosso governo, quando não recua, é obrigado a não avançar, e assim transita da centro-esquerda (proposta da campanha eleitoral) para o centro, frustrando as massas que dele ainda espera as mudanças prometidas, hoje tornadas inviáveis em face da correlação de forças de que depende para simplesmente sobreviver. E que, aparentemente conformado, não busca alterar.

O quadro pode piorar?

Por sem dúvida que pode, se não houver a revisão programática das esquerdas e do governo. O governo Lula, olhando de frente e com coragem a realidade fática, precisa ser um novo governo, amparado em um programa reconhecível pelo país, corajosamente mudancista, refazendo práticas, projetos e composição em função de novas práticas e projetos. E, sem poder abrir mão das negociações, decidir-se (é bom lembrar-se que já está no encerramento do segundo ano de seu mandato) a dialogar com o povo, que em grande medida ainda acredita nele. A tarefa é árdua, pois se trata de trocar os pneus com o caminhão andando. O tempo alimenta a angústia. A habilidade, e mesmo a manha, continuam necessárias, mas deixaram de ser suficientes, pois as novas circunstâncias exigem também decisão e coragem para mudar.

A tarefa é dos partidos, mas não apenas deles, pois a esquerda está comprometida com os destinos do governo que ajudou a eleger e tenta sustentar. Os fatos exigem, dos partidos e do governo, dos sindicatos e da militância, um sistemático trabalho de educação política, de sorte a fazer frente à permanente lavagem cerebral a que são diuturna e sistematicamente submetidas as grandes massas, indefesas em face da grande mídia, aparelho ideológico da classe dominante, tanto quanto as redes sociais e a ação politizada e partidarizada de seitas religiosas postas a serviço do atraso.

***

O ranço ideológico da caserna e o ministro patético – Constrangendo (espera-se) o governo que representa, e pelo qual é prestigiado além da medida, o ainda ministro da defesa defende publicamente financiarmos o genocídio palestino, vendermos armas para o governo nazifascista da Ucrânia (afrontando a Rússia, nossa parceira estratégica no Brics), violentarmos os povos indígenas e acobertarmos de maneira farsesca a participação da cúpula das forças armadas na intentona de 8 de janeiro. O ex-usineiro José Múcio frauda seu papel no Ministério, transformando-se em locutor do que resta de mais atrasado entre os fardados. O pacote de reacionarismo empedernido expelido por ele, orgulhoso representante das viúvas da ditadura militar encasteladas nas forças armadas do Estado brasileiro, exige sua imediata demissão. Um recuo de Lula nesse tema estratégico seria uma péssima sinalização.

Vingança bandoleira – Fustigada pelo desejo de vindita do coronel Arthur Lira contra o STF (quando este age corretamente), a CCJC da Câmara dos Deputados – de composição lamentável, com raras e honrosas exceções – acaba de aprovar projetos que confrontam cláusulas pétreas da Carta de 1988 como a limitação dos poderes do Judiciário. O bando conta com o esperável endosso do plenário da Casa, bem como da rebaixada oposição instalada no Senado. Assim, vai se consolidando no país o golpe de um parlamentarismo de fato, sem audiência constitucional e sem a homologação da soberania popular (que sempre o rejeitou). Um parlamentarismo, em suma, sem amarras, sem responsabilidade… e sem vergonha.

(Colaboração Pedro Amaral)

ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org

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