Por Ricardo Cravo Albin

“Duas das mais importantes cantoras da MPB, que representam dois momentos históricos da diversidade do país” – Ricardo Cravo Albin

Para quem cuida como eu por quase 25 anos de mais de 20 mil biografias no Dicionário Cravo Albin da MPB, o dia de hoje 24/07/23, segunda feira foi para não se esquecer. Morrem duas cantoras de minha estima e amizade pessoais quase à mesma hora da manhã, com diferenças de poucos minutos. Quando soube simultaneamente do raro evento a pergunta aflita sairia espontânea: – Elas viajavam no mesmo avião? Ou de carro para algum show?

Leny, que morava no Retiro dos Artistas, morreu aos 80 anos em hospital por conta de pneumonia. Já Doris, aos 88, desligou-se da vida discretamente como sua voz, em casa e de causas naturais.

Ao longo do dia chegaram-me informações dos acessos dos verbetes de ambas pelo mundo. Enquanto eu ficava boa parte do dia a evocar para colegas jornalistas os muitos shows de que ambas participaram comigo. Dois, ao menos, não me fogem da memória. Os talks shows individuais “MPB pela ABL” no Teatro da Academia Brasileira de Letras comoveram vários acadêmicos, muitos dos quais como Domício Proença ou Nelson Pereira dos Santos cantarolavam quase todas as músicas.

Outro momento inesquecível terá sido a participação (esta, diferentemente dos dois anteriores, na mesma noite em Teatro do BNDES). Doris e Leny cantaram no meu espetáculo “A História da MPB – Alma do Brasil” apresentado por Fernanda Montenegro e por mim em teatro superlotado. O show hoje se converteu em vídeo histórico exibido por universidades americanas e europeias como aulas audiovisuais sobre música, trama poética, cultura e língua do nosso país.

Leny de Andrade Lima começou em boates e logo iria ao exterior, no México (com Pery Ribeiro) e aos Estados Unidos e Europa por conta própria. Sua estreia ocorreria no Rio em 1961 no Beco das Garrafas. Logo o sucesso abriria para ela sua primeira flor o show Gemini V, realizado na boate Porão 73 e registrado em LP ao vivo. Considerada a mais legítima e perfeita intérprete do jazz no Brasil, especialmente o “Samba-Jazz”, Leny dividiu-se entre o Brasil e os Estados Unidos de 1990 a 2000. Em 1987 ingressaria corajosamente na memória antológica da MPB com o LP “Cartola 80 anos”. Isso além, convem registrar, de ter prestado homenagem a Nelson Cavaquinho em CD alguns anos depois. Este CD resultaria no espetáculo em que eu criei para ela a história do poeta Cavaquinho da Mangueira apresentada para abrir o novo milênio 2000 no CCBB. Leny gravaria ainda o CD “Tom Jobim” interpretando canções que o maestro compôs sem parceiros, incluindo a música que lhe era (a ela, Leny) a mais solicitada em palcos mundiais, Corcovado. (Quiet Nights).

Adelina Dóris Monteiro nasceria no Rio e estreou em 1951 na Rádio Tupi. Doris, apesar de ser uma das vozes principais no início da década do samba-canção, os anos 50, já apresentaria no seu canto a descontração e o fraseado quase sussurrado da Bossa Nova, que somente irromperia em 1958.

Doris, jamais me esqueço, usava uma trança única que de tão comprida lhe repousava no colo bem talhado. Virgem proclamada com exagero pela imprensa, logo começaria a cantar em toda a permissiva radiofonia carioca.

Sérgio Porto o fero Stanislaw Ponte Preta me diria anos depois que Doris Monteiro foi a virgem mais cobiçada pelos gaviões em toda história da MPB. Sempre com a mãe ao lado, uma austera portuguesa de buços, Doris só conseguiria andar sozinha sem a mãe ao casar-se com cadete da Marinha, união que acabaria logo depois. Livre, a jovem cantora recomeçou carreira protegida pelo industrial Fernando Cesar, de quem gravou os sucessos Joga a Rede no Mar, Graças a Deus, além do triunfal Dó, Ré, Mi (Você é Dó/É Ré Mi Fá/ É Sol Lá Si). E foi um não mais parar de êxitos. Até porque tinha um programa só seu na TV Tupi, queridíssima que era do dono da emissora, o galante Assis Chateaubriand.

Em 1956 Billy Blanco entregou-lhe a vigorosa crônica carioca “Mocinho Bonito” (Que é falso malandro de Copacabana/ O mais que consegue é vintão por semana/ Que a mana do peito jamais lhe negou), e que encabeçou seu amplo repertório até hoje. Outro momento importante de minha amiga Doris foi quando escrevi o espetáculo memorial para os 75 anos do Rádio no Brasil. O ator principal era Gerdal dos Santos, fazendo o papel de Vítor Costa, diretor da Rádio Nacional em seu auge. Pedi a Doris que envergasse de novo sua famosa trança comprida e recitasse certos trechos sobre a Rádio Nacional. Vale recordar que Doris foi uma atriz revelação, que recebeu muitos prêmios pelos filmes Agulha no Palheiro e Rua Sem Sol, ambos de Alex Viany. Neste espetáculo para a Radiofonia, era a cantora abrir a boca, que todas as mil pessoas da plateia cantavam suas antigas criações.

Prova provada que saudade não tem idade e que o bom, quando estimado pela alma do povo, volta sempre. Tal como as memórias de Doris e Leny, duas saudades. A serem lembradas hoje e nos anos subsequentes.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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