Por João Batista Damasceno –
Excelentíssimo Senhor Presidente,
Excelentíssimos Senhores magistrados presentes fisicamente e virtualmente,
Excelentíssimos Senhores advogados e Defensores Públicos,
Ilustríssimos Senhores Serventuários e demais agentes públicos,
Senhoras e senhores,
Cumprimento os colegas que igualmente estão sendo empossados nesta data: Dr. Luiz Umpierre de Mello Serra, Dr. Luiz Eduardo Cavalcanti Canabarro e Dr. Paulo César Vieira de Carvalho Filho.
Assumo nesta data o cargo de desembargador. Não me agrada o nome do cargo. Sou juiz!
Vivemos em instituição que designa seus ocupantes por vocábulos cujos sentidos são postos na ordem inversa da ascensão nas entrâncias da carreira ou instância recursal. Na Magistratura os juízes são promovidos a desembargadores e alguns chegam a ministros, cujo radical min indica fragilidade ante o radical man, constante do vocábulo daqueles que promovem a justiça no poder judiciário e em cujas manifestações, na forma imperativa, consistem em mandar que seja a ordem jurídica efetivada, para a realização da justiça. Mas tal fenômeno vocabular denota que aqueles que ocupam cargos iniciais na estrutura deste poder do Estado o fazem por critérios profissionais e meritocráticos, desempenhando as funções típicas dos cargos que ocupam e do poder que exercem.
Todos os membros permanentes do primeiro grau da magistratura brasileira ingressam nos cargos por meio de concurso público de provas e títulos. Diferentemente, ao final da carreira ocupam os cargos, por vezes, por injunções políticas para funções de meros desembargos e alguns são nomeados para funções ministeriais, isto é, por mercê da concessão do poder. Daí é que, se tomada a expressão vocabular, um juiz se transforma em mero agente de desembargo ou na melhor ou pior das hipóteses em ‘min-nistro’. Está evidente que pelo menos o vocábulo se degenerou. Mas se os vocábulos trazem o ranço da estrutura politizada, hierarquizada e subserviente, podemos fazer de forma diferente no âmbito de nossas atuações.
Na magistratura fiz muitos amigos e os cultivo. Não são parceiros com os quais compartilhe interesses. Minha relação com todos estes decorre de suas integridades pessoais, capacidade de trabalho, preocupação com a realização da justiça e competência. Com muitos dos quais não tenho afinidades filosóficas ou ideológicas. Mas não lhes posso negar o reconhecimento da integridade pessoal e intelectual, o que para mim basta para integrarem o ciclo de minhas relações pessoais, afetivas e profissionais. A amizade é o mais sublime dos prazeres, dizia Epicuro. Mas para tanto, precisa atender aos pressupostos para o seu estabelecimento. E na magistratura encontrei muitos amigos.
Neste momento de distanciamento físico temos tido a oportunidade de vivenciar a proximidade social por meio das plataformas digitais que nos aproximam.
Hoje, entrei neste tribunal ladeado por uma desembargadora e um desembargador que honram esta casa. O desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, que preside a 27ª Câmara onde atuei como JDS desde 2014, e a desembargadora Gizelda Leitão Teixeira, que integra a 4ª Câmara Criminal deste tribunal.
A desembargadora Gizelda Leitão Teixeira se caracteriza por sua operosidade, competência, honestidade intelectual e coerência. Embora em nossas interlocuções nem sempre cheguemos às mesmas conclusões, e isto decorra de nossas particulares visões de mundo, minha admiração e respeito não lhe poderiam faltar, como consequência dos seus muitos e positivos atributos. Tenho a honra de ter sido conduzido neste salão, para posse no último patamar da carreira, por uma magistrada originária do Quinto Constitucional do MP. As qualidades da Desembargadora Gizelda Leitão Teixeira demonstram que o problema deste modo de ingresso nos tribunais não é o critério em si. Mas, as injunções que possibilitam algumas nomeações. Outros com similares grandiosidades igualmente honraram este Tribunal e dentre eles cito José Carlos Barbosa Moreira, Ebert Vianna Chamoun, Nildson Araújo da Cruz, Marco Aurélio Bezerra de Melo, além de outros. Não encerrarei listagem fechada, para não cometer a injustiça decorrente do esquecimento. Outros há. Mas a falta de critério na elaboração das listas na origem e neste próprio tribunal nos permite dizer que a exceção tem sido usada para justificar o critério. E, quando a exceção precisa ser usada para justificar a regra, há algo estranho nesta. Isto decorre da formação social brasileira.
O desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres é um antigo amigo e companheiro. Intelectual sem igual, com notável compreensão dos fenômenos jurídicos e dos institutos que compõem a ordem jurídica, voz que sempre merece ser ouvida. Ao ser convocado para atuar na 2ª instância como Juiz de Direito Substituto de Desembargador, no ano de 2014, tive a felicidade de ser designado para a 27ª Câmara por ele presidida. Naquela Câmara, recepcionado por ele e pelos demais integrantes, pude experimentar os julgamentos colegiados com as peculiaridades que os distinguem dos julgamentos monocráticos que realizei durante toda a minha carreira em distintas comarcas. Como sempre aprendi com o desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, na 27ª Câmara Cível tive a oportunidade de reiterar o aprendizado.
Eu poderia nominar outros muitos amigos no seio da magistratura fluminense: desembargadores Rogério de Oliveira Souza, Nagib Slaib Filho, Paulo de Tarso Neves, Werson Rego, Custódio de Barros Tostes, Celso Ferreira Filho e outros, além dos meus companheiros do Núcleo da AJD-RIO, que tive a honra de ajudar a instalar, conjuntamente com eles, onde fui seu primeiro coordenador regional; dentre eles, estão Maria Lúcia Karam, Siro Darlan, André Tredinnick, Márcia Quaresma, André Vaz, Geraldo Prado, Regina Rios, Wanderley Rego, Isabel Coelho, Cristiana Faria Cordeiro, Rubens Casara e Sérgio Verani. Lamentavelmente alguns já se foram e um deles, que também integrou a AJD, foi o professor e magistrado João Luiz Duboc Pinaud. É imperioso encerrar as citações nominais, ao me deparar com a relação dos amigos que fiz ao longo da carreira, sejam os que comigo atuaram como juízes na segunda instância, nas atribuições de JDS Desembargador, ou os muitos outros amigos que fiz ao longo da carreira no primeiro grau. O rol ficaria longo. Omito-os desta nominata, mas não da minha lembrança, admiração, respeito e afeto.
Na 27ª Câmara Cível, onde atuei desde 2014, não poderia deixar de mencionar o saudoso desembargador Antônio Carlos Bitencourt e as desembargadoras que naquela Câmara me recepcionaram com muito afeto e tolerância, que são as desembargadoras Tereza Cristina Sobral Bittencourt Sampaio, Maria Luiza de Freitas Carvalho e Mônica Feldman de Mattos. Posteriormente a Câmara foi engrandecida com as titularidades das desembargadoras Lúcia Helena do Passo, com quem trabalhei na Comarca de Nova Iguaçu, e Jacqueline Lima Montenegro.
Trabalhei em diversas comarcas, e em todas tenho a sensação do dever cumprido: Petrópolis, Angra dos Reis, Barra Mansa, Itaperuna, Natividade, Magé e Nova Iguaçu. Na comarca da Capital atuei no foro central, no foro Regional da Ilha do Governador e no Juizado Especial instalado em 1997 no bairro da Penha. Mas a experiência mais robusta de contato com a realidade, que o burocratismo ignora, foi minha atuação no então Juizado de Pequenas Causas da Rocinha, instalado na parte mais alta do morro, e ao qual ia todos os dias pela manhã. Todos deveríamos ter a experiência de conhecer questões criadas a partir do modo pelo qual o solo brasileiro foi apropriado por uns em detrimento de muitos. As favelas das cidades e do campo não são criação dos que nelas vivem. Mas da estrutura imobiliária que permitiu a alguns se apropriarem ou grilar, bem não decorrente de trabalho, que é a terra onde se pode morar, viver, plantar e colher.
Em nenhuma das comarcas nas quais atuei o trabalho que desenvolvi teria sido adequado se não tivesse nelas encontrado serventuários do quadro permanente do tribunal, zelosos e com elevadas consciências de suas atribuições, que executaram as decisões proferidas, ou assessores que me auxiliaram no dia a dia, por vezes com a virtude de apontar determinados equívocos antes que fossem publicizados.
Ingresso hoje em cargo efetivo de desembargador, no 28º ano desde que assumi a magistratura de carreira, e no 7º ano atuando como juiz de direito de segundo grau, substituto de desembargador. Nada fiz para “merecer” promoção anterior, ante as condutas exigidas dos que almejam reconhecimento de mérito, que por vezes efetivamente têm.
Não procurei os caminhos mais fáceis. Sei que os caminhos mais fáceis são, por vezes, os mais dificultosos. Minha carreira foi integralmente percorrida em efetivo desempenho da atividade jurisdicional. Jamais me afastei da jurisdição para funções administrativas. E, quando me foi ofertada a possibilidade de deixar de ser juiz e ser auxiliar administrativo, joguei a possibilidade pela janela, promovendo julgamento que desagradara ao autor do convite e aos seus associados. Depois de ingresso na magistratura continuei estudando. Concluí dois mestrados e um doutorado, em instituições públicas de qualidade, sem me afastar do exercício jurisdicional e sem prejudicar a presteza em tal atividade. O que me é prestado pela sociedade o é para julgar, e o fiz com honestidade intelectual.
O cargo que assumo nesta data está vago desde fevereiro. Um cargo que vagou em dezembro teve a publicação do edital para o seu preenchimento no mesmo dia da vacância. Igualmente o cargo que vagou no mês em curso. Nem sempre a administração pública, mesmo a administração judiciária, prima pela celeridade quando o que se trata é do direito a ser reconhecido impessoalmente. Tal falta de presteza ocorre mesmo quando o cidadão titular do direito é um magistrado no âmbito do próprio tribunal que compõe.
Raduan Nassar, em sua obra Lavoura Arcaica, narra os abusos dos poderosos que exigem dos pobres a paciência. Dos cidadãos se exige paciência. Mas para os estamentos privilegiados ser senhor é ser servido e demandam-se imediato atendimento às suas pretensões, às vezes com sérias consequências para os que ousam desatender (como ocorreu com as profissionais de saúde no posto municipal de vacinação do Jockey Club Brasileiro semana passada, às quais rendo minhas homenagens). Na obra de Raduan Nassar encontramos a exemplar recomendação dos poderosos para quem “os pobres deviam mostrar muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de dar mostras de irritação”.
Senhor Presidente, sempre fui pobre e não usei a magistratura para o enriquecimento. Mas nunca fui um pobre de espírito que esmola o que é direito. Porque direito é o poder de exigir. Sou pequeno, mas, tal como Castro Alves, miro os Andes. Sou um condoreiro! E por isso a minha irresignação com a politização da justiça que viola direitos fundamentais; e por isso meu inconformismo com as instituições que simulam julgamentos quando, antecipadamente, já se conhecem os resultados a serem publicizados, porque de antemão proferidos.
Na última sexta-feira solicitei ao serviço de Cerimonial que elaborasse um convite para envio a amigos e familiares com informação do link no qual poderiam assistir à presente posse, pela via virtual, ante o recomendável distanciamento físico determinado pela pandemia da COVID. O serviço de cerimonial deste tribunal informou-me que não poderia elaborar o convite, pois, das quatro vagas a serem preenchidas duas o seriam por merecimento e que, somente após a sessão de julgamento, designada para hoje às 13h00, seria possível saber o nome dos escolhidos. Não só relatei à funcionária do serviço de Cerimonial o nome dos dois valorosos magistrados que, sendo remanescentes de listas de merecimento anteriores, seriam novamente reincluídos e promovidos, bem como informei os nomes dos que seriam admitidos em lista de merecimento pela primeira e pela segunda vez na mesma sessão.
É justo que aqueles que remanesçam de lista de merecimento sejam incluídos nas que estejam em elaboração, para que sejam promovidos por este critério, se a integrarem por três vezes consecutivas ou cinco alternadas, nos termos do art. 93, II, ‘a’ da CR. Salvo se houver o que recomende a exclusão, não há porque deixar de reconhecer o merecimento pronunciado em julgamento anterior.
Nem sempre aqueles, que julgamos merecedores em razão da produtividade, presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento, são os que têm o mérito reconhecido. A politização da justiça e os mecanismos de reprodução das elites institucionais no âmbito do judiciário são meios de violar a independência judicial e o regular funcionamento da justiça. E neste momento não poderia deixar de homenagear a juíza Mafalda Lucchese, com quem tive a honra de trabalhar na Comarca de Magé no distante ano de 1996. Ela ingressara na magistratura antes de mim, e mesmo pelo critério de antiguidade, chego ao último degrau da carreira antes dela.
Precisamos repensar as práticas não formais que permeiam as relações no âmbito do poder judiciário, notadamente deste tribunal fluminense. É inadmissível que, num tribunal que se denomina ‘de justiça’, convivamos com os simulacros de julgamentos, quando o veredicto já é acertado e conhecido meses ou anos antes da sessão que o proclama. E exemplifico:
Desde o ano de 2007 venho protocolando com antecedência o nome dos agraciados com a promoção por merecimento. Não faço qualquer cálculo que me possibilite predizer o futuro. Nem tenho bola de cristal. O que estudo são as injunções políticas que engendram tais listas prévias de merecimento. Realizam-se longas sessões de aparentes julgamentos, quando se está diante de mero simulacro, pois o resultado está de antemão conhecido, e com meses ou anos de antecedência protocolados na presidência deste tribunal.
Muitos dos beneficiários de tal prática nefasta são efetivamente merecedores e igualmente seriam promovidos por merecimento se o julgamento atendesse aos princípios constitucionais que deveriam nortear a atuação da administração judiciária. Mas a ela se subjugam com prejuízo de suas dignidades pessoais. O Padre Antônio Vieira, no Sermão do Bom Ladrão, disse que “a porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento”. E mérito entre nós tem sido a antiguidade. Mas o Padre Antônio Vieira diz mais: “Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade…”. Enfático, o autor do sermão diz a que vêm os que entram por tais meios. Não negociei meu acesso a este tribunal, até porque o preço a pagar seriam direitos alheios.
Se alguém ocupa cargo no lugar de outrem, que era o efetivamente merecedor, é usurpador do cargo. E a magistratura não pode ter em seus quadros usurpadores de direitos alheios. Mas não só os que se apropriam indevidamente dos cargos merecem tal qualificativo. Quem de qualquer modo concorre para o ilícito incide nas penas a ele cominadas. Daí que os que elaboram a lista prévia igualmente são partícipes ou coautores da mesma usurpação. São os autores intelectuais do ilícito que a outrem aproveita e devem igualmente deleitar-se com o que fazem. Diz ainda o Padre Antônio Vieira: “… quem negocia não há mister outra coisa: já se sabe que não vai a perder”.
Chego ao último degrau da carreira, para ocupar o cargo de desembargador, no tempo certo, por antiguidade. Não precisei ir a nenhum gabinete negociar a promoção. Não pedi favores. Não atendi favores. Se alguma injustiça cometi em julgamentos ao longo de minha carreira, decorreu de falsa representação da realidade, expressa por erro quanto à realidade fática ou à realidade jurídica. A erros estamos todos sujeitos os que formulamos juízos a partir dos sentidos e da sua falibilidade. Mas jamais incidi em julgamentos enviesados para atender a interesses escusos ou participar da politização que violam direitos ou atentam contra o interesse público.
Tomo como referência para o presente discurso de posse, o sermão pregado pelo Padre Antônio Vieira na Capela da Misericórdia em Lisboa, no ano de 1655. Tal como fazia aquele clérigo, não tenho a vivência do anonimato, da clandestinidade ou das intrigas de bastidores, porque vivo republicanamente. Não tive, como Juiz de Direito, a vivência e a experiência do anonimato, da clandestinidade, da subserviência ou das intrigas cochichadas nos bastidores, porque vivo republicanamente e procurei compreender o universo no qual me inseri quando ingressei nesta instituição.
Tenho uma ficha funcional com dois elogios, que não me orgulham, e nenhuma anotação desabonadora, embora tenha sofrido 6 (seis) representações ao longo de minha carreira, e todas – por meio da resistência ao arbítrio a que não me dobrei – se converteram em relevantes precedentes em prol da defesa da independência judicial.
Ainda no segundo ano de exercício da magistratura, foi-me distribuída ação eleitoral na Comarca de Magé contra candidato e contra prefeito que era afilhado do presidente deste tribunal. O advogado contratado para a defesa fora o filho do então corregedor. Agi como agiria hoje. Dos políticos denunciados naquele processo não pude reclamar. Não atentaram contra minha honra, não atentaram contra minha integridade física, não atentaram contra minha vida ou contra minha carreira. Desempenharam seus papeis de tentar fugir da aplicação da lei, o que não lhes pode ser imputado como ilícito. Mas dos seus protetores, notadamente dos que agiam interessadamente, no âmbito deste poder e do Ministério Público, posso dizer que tiveram papel que me surpreendeu. Ressalvo aqui o papel desempenhado pelo então promotor de justiça Pedro Elias Erthal Sanglard, que naquele episódio demonstrou que as instituições podem se dignificar se os que lhe desempenham as funções tiverem dignidade. E ele teve!
Logo cedo aprendi que os inimigos da independência judicial não estão apenas fora da magistratura. Estão presentes no seio da instituição e às vezes assumem hegemonia institucional, visando a atender aos interesses que representam que não são os da sociedade e da ordem jurídica democrática. Naquele episódio cheguei a ser acusado de descumprir liminar que sequer havia sido deferida. Propuseram-se resolver tudo num acordo, o que não aceitei. Preferi deixar que me punissem a fim de buscar a anulação da arbitrariedade em sede judicial. Em todas as instâncias a que recorri, e nas quais encontrei magistrados que dignificam suas funções, obtive ganho de causa e ao final anulei a ilegalidade que se praticara.
Fui chamado de arrogante pela postura não conciliatória. Efetivamente desde que tomei posse na magistratura, arroguei-me o direito à independência judicial. Acusam-me de altivez, de narcisismo e de esquisitice. Parafraseando o intelectual português Manuel Alegre digo que é sobretudo reserva, falta de gosto pela mediocridade e uma profunda incapacidade de praticar a herança colonial da hipocrisia, do cinismo e do compadrio. Ou talvez uma tradição herdada da mineiridade: levantar a cabeça e olhar direto para as montanhas a serem escaladas, sem se importar com os percalços do caminho.
Daquele episódio aprendi que os ‘donos do poder’ podem cometer suas arbitrariedades num primeiro momento, mas que, se tivermos fôlego para enfrenta-los eles não resistem à exposição perante outras instâncias. Este foi o primeiro precedente. A resistência inibe a arbitrariedade.
De 1997 a 2013, não recebi qualquer representação. Mas o assanhamento do fascismo que tomou conta do Brasil nos últimos anos tentou criminalizar-me, em 2013, pela exposição de uma obra de arte, de autoria do cartunista Carlos Latuff, que denunciava o genocídio de jovens negros e pobres na periferia da Cidade e na Baixada Fluminense, por uma política do Estado que perpassa governos e que é levada à cabo pela força estatal. Não se trata de execuções praticadas pela polícia em desvio de função. Se fossem apenas maus policiais os responsáveis pelas mortes, o Estado já teria feito cessar tais eliminações físicas dos indesejáveis, tratados pela mídia e instituições como “suspeitos”.
A política de extermínio que se executa neste Estado, e que faz escola para o resto do país, é uma política de Estado, que perpassa governos e para a qual contribuem todas as instituições do sistema de justiça, e com aplauso acalorado dos interesses que se beneficiam e se locupletam com a política de extermínio de pretos e pobres.
Em 2017 deferi liminar num habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública suspendendo a eficácia de um mandado de busca e apreensão genérico que possibilitava a devassidão de todos os domicílios de 17 comunidades, incluindo todas as das Favelas do Jacarezinho, de Manguinhos, da Bandeira-2, além dos Conjuntos Habitacionais Morar Carioca e Triagem. Na mesma semana a morte, fora de serviço, de um policial a quem se atribuiu proximidade com milícias teve resposta diferente. Das truculências estatais nas favelas não houve pronunciamento deste tribunal. Mas em razão da morte do policial, fora de serviço, a quem se atribuiu proximidade com milícia, e cujo assassinato pode ter sido ajuste de contas de seus ex-companheiros de desventura, o então presidente deste tribunal decretou luto oficial por três dias. O conflito de interesses e de concepções inconciliáveis ficou evidente naquele episódio e o tribunal, por seu presidente, fez a sua opção. Deste tipo de opção é que resultou a perseguição à obra de arte do cartunista Carlos Latuff.
A representação – em decorrência da colocação de uma obra de arte no juízo que titularizava, deflagrada a partir de ofício de um deputado estadual, cujos assessores hoje sabemos quem eram e que se notabiliza pelo que se denomina com o eufemismo de “rachadinha”, quando o nome técnico é peculato, – foi rejeitada pela maioria do Órgão Especial. A maioria, embora silenciosa, sempre que provocada por mim em demandas judiciais, correspondeu-me aos anseios de justiça.
A decisão da maioria do órgão Especial deste tribunal assentou um precedente: Juízes podem ostentar em seus gabinetes obras de arte alusivas a atrocidades contra os direitos humanos. Este foi o segundo precedente. Guernica é aqui e Picasso não pode ser censurado!
No bojo das ‘jornadas de junho’ de 2013 declarei que “a democracia se caracteriza pelo poder do povo. Não só através dos seus representantes, mas também diretamente ocupando a cidade, o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes e dos movimentos sociais é uma expressão da violência ilegítima do Estado; da truculência contra a democracia”. Igualmente proferi aula, em logradouro público, para estudantes que acampavam diante da casa de governador protegido pelas instituições estatais, e isto implicou em outra representação. O tema da palestra fora “Direitos dos manifestantes e limites da ação policial”.
As representações foram igualmente rejeitadas pela maioria dos membros do órgão do tribunal encarregado de apreciá-las, e delas resultaram os terceiro e quarto precedentes: juízes têm o direito à liberdade da manifestação do pensamento e podem ministrar aulas, ainda que sejam em logradouro público, para estudantes, trabalhadores ou outras categorias sociais que apenas comparecem aos tribunais como rés ou testemunhas. Portanto, os juízes não estão condenados a falar, exclusivamente, em locais fechados, auditórios ou resorts, com o custeio pelo empresariado nacional.
Embora também sejam lícitos os encontros com o empresariado da indústria, do comércio e dos serviços tal classe social não é a única com a qual os juízes podem relacionar-se. Juízes podem estabelecer relações com o empresariado, mas não só com esta classe estão limitados em suas relações. Numa sociedade de classe, as relações sociais estabelecidas pelos juízes podem ocorrer com o mundo do capital, assim como com o mundo do trabalho.
As reiteradas representações que o Corregedor do biênio de 2013/2014 apresentou contra mim, com a instigação dos que não se expõem, acabou por resvalar para desencontro pessoal, o que foi recomposto com a maturidade pessoal e institucional que tivemos, mediada pelo Desembargador Siro Darlan.
Mas mesmo tendo testemunhado a autocomposição do conflito interpessoal, o presidente do tribunal do biênio 2015/2016 insistiu em uma representação contra mim. Sequer tinha competência funcional para fazê-lo. Tal presidente do tribunal tinha boas e fundadas razões pessoais para forçar o recebimento daquela representação. Poderia não ter razões éticas e jurídicas, mas tinha razões pessoais. E por isso a decisão figadal.
Já se disse que não há Pasárgada para quem assume o papel de Galileu. Quem entra no ringue não pode reclamar da violência da luta. Sempre acompanhado por advogado indicado por minha associação de classe, pude vivenciar o quanto a atividade profissional dos advogados é imprescindível para a defesa dos direitos e das liberdades. Todo juiz deveria experimentar ao longo da vida um processo injusto, conduzido por juízes interessados em lhes prejudicar, para vivenciarem a importância dos que defendem os direitos de quem esteja sujeito a sanhas vingativas. Ainda que ao final não resultassem consequências jurídicas, restaria o dissabor do conhecimento das anomalias institucionais as quais não deveríamos ignorar. Aproveito para prestar homenagem a todos os advogados que defendem os direitos e as liberdades, na pessoa do saudoso Dr. Onurb Couto Bruno.
Desde que em 2001 escrevera manifesto intitulado ‘a questão institucional: o discurso e a prática’, me tornara desafeto daquele que jamais reclamaria dos termos postos, mas que aguardaria o momento certo para a vindita. A resposta ao manifesto escrito e publicado em 2001 veio em 2015 quando o desafeto assumiu a presidência do tribunal. Assim, recebida a representação por 21 votos a 4 restou ao final julgada improcedente. Este é o quinto e último precedente para o qual contribuí com o dorso calejado. Os juízes não estão subordinados aos desembargadores. Não há entre nós hierarquia, seja no âmbito institucional ou social. As relações sociais que hierarquizam tais agentes do poder são anômalas à independência judicial.
Repugna-me a expressão ‘juiz de piso’, pois segrega a magistratura tal como uma unidade fabril do passado, onde os trabalhadores de ‘colarinhos brancos’ estabeleciam as metas nos confortáveis escritórios, distantes das fábricas onde trabalhadores com ‘colarinhos azuis’, dos macacões, faziam o trabalho pesado. A hierarquização da magistratura tal como se existissem ‘juízes de piso’, similares aos trabalhadores do ‘chão de fábrica’, é forma excludente do direito dos juízes de primeiro grau de participarem da administração de uma instituição que a todos os magistrados é comum. Trata-se da hierarquização social em uma instituição que não é legalmente hierarquizada.
Claro que sempre haverá aqueles que se seduzirão pela proximidade dos que consideram ‘grandes’ e diante deles se acocorarão, se sentarão quando ordenados a sentar ou se levantarão se ordenados a levantar. Almejo que isto deixe de existir, apesar de conhecer a advertência de Victor Nunes Leal: “As garantias legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas: transferência para lugares mais confortáveis, acesso aos graus superiores, colocação de parentes, gosto do prestígio, eis os principais fatores de predisposição política de muitos juízes”. (O Município e o Regime Representativo no Brasil: contribuição ao estudo do coronelismo, Rio de Janeiro: Forense, 1948, pag. 158).
As razões com as quais sempre julguei jamais foram pessoais. Os juízos que busquei formular sempre foram os determinados pela ordem jurídica que busquei realizar. Compreendidas as ocorrências fáticas narradas nos autos, reconstituídas pelos meios probatórios admissíveis, a elas apenas dei as qualificações jurídicas próprias, sem juízos outros que não fossem os determinados pela ordem jurídica.
Se a vontade a ser realizada pelos tribunais não for a da ordem jurídica qualquer um pode fazer o que quiser com suas próprias razões. Manuel Antônio de Almeida, em Memórias de um Sargento de Milícias, nos exemplifica o que é a pessoalidade na aplicação da lei. “Ora, a lei… o que é a lei, se o Sr. major quiser?”. A obra da metade do século XIX, retratava o poder de um chefe militar, similar ao das forças regulares em formação ou das milícias recenseadas pelo Regente Feijó. Mas explicitou o que é a pessoalidade na execução das leis. Tal como na obra literária, hoje, qualquer chefete transitório arroga-se refundador da República e faz o que lhes ‘parece ser de bom senso’.
Ignoram-se que “O bom senso é a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída: de fato, cada um pensa estar tão bem provido dele, que até mesmo aqueles que são os mais difíceis de contentar em todas as outras coisas não têm de forma nenhuma o costume de desejarem [ter] mais do que o que têm. E nisto, não é verossímil que todos se enganem; mas antes, isso testemunha que o poder de bem julgar, e de distinguir o verdadeiro do falso que é aquilo a que se chama o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; da mesma forma que a diversidade das nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais razoáveis do que outros, mas unicamente do fato de nós conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas, e de não considerarmos as mesmas coisas” conforme o descreveu Descartes nas primeiras linhas do seu Discurso do Método. Esta é a razão pela qual o bom senso não pode servir como parâmetro para os julgamentos, demandando dos juízes fundamentem suas decisões na ordem jurídica.
Sempre atuei com liberdade, mas atento à ordem jurídica e buscando a realização da justiça não apenas formal, mas sobretudo substancial. Sempre me foi maravilhosa a sensação de liberdade de saber que a sentença por mim proferida, ou o voto pronunciado, correspondia precisamente ao que pensava, elaborado com minha compreensão sobre os fatos e sobre o direito a ele aplicável. Se a interpretação sobre os fatos, ocorrência concreta no mundo natural, decorreu de falha dos meus sentidos jamais minha consciência poderá acusar-me de que fraudei a percepção ou que tomei como verdade realidade diversa da que me foi provada. Igualmente se o direito aplicado não correspondeu ao caso, isto decorre de minhas limitações intelectuais. Jamais da má-fé dos que se servem de institutos não aplicáveis a casos concretos para atender interesses ou paixões.
É gratificante poder olhar o resultado do meu trabalho e saber que reflete precisamente o que consta nos autos e que não se trata de atividade mascarada.
A mim, basta a consciência de que sempre fui fiel aos fatos narrados e à lei a eles aplicáveis. Sempre julguei por princípio e coerência sem preocupações com as opiniões e interesses inconfessáveis. A mim pouco importa quem seja o vencedor da demanda. Interessado sou em prestar a jurisdição, sem qualquer proveito no resultado da demanda ou preocupação em proveito a destinatários previamente escolhidos. Sempre busquei respeitar a magistratura que a mim foi confiada, e sei a qualidade de magistrado que sou. Embora meus votos estejam sujeitos aos juízos críticos de quem deseje conhecê-los, em nenhum deles encontrarão parcialidade ou distorções fundadas em interesses ou sentimentos mesquinhos. E isto me basta!
Não basta que não naveguemos ao lado das pessoalidades. É preciso que rompamos com a ética passiva e adotemos postura ativa em prol da revitalização de um poder judiciário garantidor dos direitos e garantias fundamentais, com atuação estrita na legalidade e não nos caprichos, desejos e vontades pessoais. É preciso ‘colocar em xeque’ o estatuto do instituído; do senso comum. É preciso romper com a ideologia conservadora da suposta neutralidade, que recusa a realização substancial do Direito. Tal como Descartes e Galileu é preciso ‘por em xeque’ o estatuto do estabelecido, mesmo que assuste o senso comum da neutralidade que supõe atuar na periferia da ideologia. Os ‘neutros’ são os ideólogos da manutenção da injustiça; ideólogos porque construtores de ideologia que justifica a permanência do que não é ordem, mas desordem e iniquidade.
Modernista, o poeta Manuel Bandeira escreveu estar farto do lirismo comedido; do lirismo bem comportado; do lirismo namorador, político, raquítico e sifilítico; farto de todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo, porque não é lirismo; apenas contabilidade. A pós-modernidade nos trouxe o ‘bom mocismo’. Trata-se de categoria que igualmente não pode deixar de ser lembrada, pois é tão perversa quanto a ‘neutralidade’. O bom mocismo é marqueteiro e ‘discurseiro’ multiuso: descreve tudo abstratamente, mas é escorregadio e incapaz de se posicionar diante de situações concretas. O bom mocismo é cínico e, intimamente, ignora os vulneráveis e os destinatários da justiça. O bom mocismo é incapaz de decidir e espera que as partes resolvam por si sós os seus conflitos, dizendo propiciar o ‘empoderamento’ dos cidadãos. Num mundo de incertezas, amplia a insegurança. O bom mocismo é conservador e mantenedor do status quo. Líquido, não tem solidez. Volátil, não tem núcleo. É ‘light’, mas periférico. É diante da concretude dos interesses em conflito que devemos nos posicionar. Clarice Lispector, sem costear o bom mocismo, escreveu: “O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno“.
Repugna-me ouvir que o judiciário é uma república para os afilhados ou como a mim descreveu um ex-presidente deste tribunal na presença de um magistrado que em breve também tomará posse como desembargador: “Este tribunal é uma aristocracia familiar”.
Repugna-me ver que a publicação dos editais, a escolha dos juízes eleitorais, a escolha dos juízes para as melhores varas são feitas obedecendo à genética do candidato ou aos interesses a que estiverem filiados.
Repugna-me constatar que a docilidade e subserviência do juiz é tratada como equilíbrio e habilitação para os manjares servidos aos ‘favoritos da corte’.
Aos juízes foi deferida vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, a fim de não precisarem se sujeitar aos interesses dos poderosos. E isto está na Constituição!
A Constituição não é apenas um livro contendo palavras. É um conjunto de princípios, valores e interesses a serem realizados. A Constituição é o que fazemos dela na prática. Daí que não pode ser entendida apenas como um conjunto de palavras a serem recitadas. Sem compreender que os livros contêm princípios, valores e interesses, um personagem contemporâneo disse que “Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”. Na Constituição não há “palavras demais escritas”. Há o que dever ser realizado!
A dignidade da pessoa humana, a cidadania, o pluralismo e o valor social do trabalho são fundamentos da República. A constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem estar de todos, sem preconceito de qualquer espécie são objetivos fundamentais da República. Está nos artigos 1º e 3º da Constituição. Não são apenas coisas escritas. São mandamentos constitucionais. E não se trata de ideias vindas de uma ilha rebelde do Caribe que insiste em ser independente e exercitar soberania. Tais valores decorrem da ascensão burguesa com a Revolução Francesa e que colocou na ordem do dia a agenda dos Direitos Humanos ou Direitos Fundamentais da Pessoa Humana; que elevou a plebe; os homens comuns à condição de cidadãos, e que consagrou o princípio de que todo o poder emana do povo.
No Brasil a igualdade jurídica não é para todos, o que leva à aceitação de que os direitos não sejam para todos. E somente por isto as chacinas, que até o ano de 2007 aconteciam nesta cidade e na Baixada Fluminense, nos becos não iluminados das noites escuras das favelas e periferia, hoje ocorrem durante o dia, sem relevante reação da parcela da sociedade que tem proveito das garantias legais. Ao contrário, a truculência estatal contra os vulneráveis foi convertida em espetáculo, do qual participa o poder judiciário.
Temo pela espetacularização da justiça. A aliança que se estabelece entre as instituições do sistema de justiça, empresas de comunicação e profissionais do jornalismo é danosa para os direitos das pessoas humanas. Os juízes não podem ter interesse a priori. Mas hoje já se fala pelos corredores dos tribunais em “estratégia judicial”, que na verdade é “jurisdição de emboscada”. Jornalismo tem interesse a priori, pois sendo o lucro o objetivo das empresas de comunicação, sua visão de mundo está comprometida pela manutenção de uma ordem que lhe garanta os resultados almejados. Aquilo que por vezes é justa reclamação por direitos no mundo do trabalho, é tratado pela mídia corporativa como faltas graves contra a ordem, que tais empresas estão comprometidas em manter porque lhe é vantajosa.
Estou muito contente em chegar ao último degrau na carreira da magistratura fluminense e muito mais contente por estar sendo promovido pelo critério da antiguidade. Não me foi preciso submeter ao ‘beija-mão’ e aos caprichos dele decorrentes, inclusive atendimentos aos notórios ‘pedidos’ ou submissão aos ‘embargos auriculares’ ou ‘recursos de pé de ouvido’, violadores dos princípios republicanos.
A exemplo de jovens boêmios e poetas, na segunda metade do século XIX, que desejavam sinceramente uma doença grave com a qual pudessem ser vistos em público e admirados por suas tenacidades, vivemos a falar do excesso de trabalho, da fadiga, do tempo subtraído do convívio com nossos familiares etc. Alguns chegam a se torturar na busca de complexidade em casos singelos, para alargar o sofrimento que é desnecessário.
Eu falo da felicidade de ser juiz e compor este tribunal. Meu núcleo familiar, composto pelo João Cândido e pela Lelyane, não reclama de tempo que lhes é subtraído. Ao contrário, reconfortam-me cotidianamente e me proporcionam equilíbrio emocional para a continuidade nas jornadas. João Cândido ouviu a leitura do presente texto e o criticou, dizendo-o cabotino, com excessivas referências na primeira pessoa. Disse-me que em tais ocorrências está acostumado a ouvir discursos de agradecimentos e elogios ao espaço no qual se insere. Lelyane gostou, sobretudo da referência à mineiridade, minha naturalidade, Estado da federação que – generosa – adotou ao longo da convivência comigo.
Para mim, não há agruras em ser juiz. Na verdade, vivemos na abastança. Nenhuma categoria de trabalhador tem os “direitos de estola” que nos são servidos, seja quanto à remuneração, flexibilidade de horário ou responsabilização pelas decisões. E por isso as relações que se engendram no seio dos tribunais propiciam a reprodução de elites institucionais e a perpetuação de modo de funcionamento capaz de vexar qualquer um que já tenha tido acesso a método racional de gestão e funcionamento institucional.
Vivemos tempo no qual escancaradamente se viola a Constituição. E isto causa assombro aos que não estão acostumados com o que sempre se fez no âmbito das instituições jurídicas ou que fecharam os olhos para a realidade. Após os 30 anos da Constituição o que se diz é que o pacto social se rompeu. Mas todos os que temos vivência da periferia sabemos que nela a Constituição nunca foi realidade. Os milhares de jovens negros executados anualmente na periferia pelo aparato repressivo do Estado ou por aparatos paraestatais, denotam a presença do Estado, mas a ausência do Estado de Direito. Não existiriam tais violações ao direito à vida não existissem no sistema de justiça os associados para a barbárie. De vez em quando um praça, quando é exposto pelo exercício da brutalidade, é levado ao tribunal do júri, quase sempre com a garantia final da absolvição. Responsabiliza-se o corpo de jurados pelas absolvições, como se o povo justificasse tais violações aos direitos humanos. Mas que fazer diante de inquéritos mal instruídos, testemunhos de cadastrados para tal fim visando a obter o arquivamento do inquérito, a rejeição da denúncia, a impronúncia ou, ao final, a absolvição? O povo julga no júri com o que lhe é preparado.
Pelos mesmos crimes de homicídio nunca são levados a julgamento os senhores do capital que contratam os serviços, os membros do Ministério Público que se associam aos justiceiros, nem membros do Poder Judiciário que asseguram a implementação de tais políticas de extermínio. A responsabilização da cadeia de comando da brutalidade contra os pobres, talvez somente venha a ser conhecida pelo Tribunal Penal Internacional, porque se está diante de crime contra a humanidade. Igualmente as condições do encarceramento em massa, em condições degradantes, a que não submeteríamos qualquer animal, se traduz em crime contra a humanidade, e deles são autores ou partícipes todos os que contribuem para a superlotação carcerária, sem atendimento aos ditames impostos por lei para a execução penal.
Sobre estado de exceção eu o conheço. Logo no início da minha carreira vi como são feitos os julgamentos nos tribunais, inclusive contra os juízes que se tornem desafetos das elites institucionais, e como os embargos auriculares são melhor apreciados que as petições ou sustentações orais dos advogados.
Mas os embargos auriculares somente funcionam quando são feitos por quem tem poder de ser ouvido e para os ouvidos seletos a escutar. Desde a primeira representação, contra mim ofertada, passei a observar o padrão de funcionamento deste poder, sejam quanto à produção dos convencimentos ou das tentativas de acomodações. Em primeiro lugar as representações são seletivas e em segundo visam, também, a admoestar os juízes e torná-los palatáveis aos donos dos feudos judiciais.
Jamais acedi a tais intentos. Nunca fui a um gabinete pedir absolvição. Não se pode obter decisão judicial por clemência. Os juízes não podem fazer favores ou misericórdia. É preciso convencê-los com racionalidade, mesmo quando dispostos a não exercitá-la. É preciso convencer com os instrumentos postos pela ordem jurídica.
Estou sendo promovido e empossado no cargo de desembargador pelo mérito. Não o merecimento aferível pelas simpatias ou favores prestados. Mas o mérito da antiguidade próprio de quem não deve favores. Jamais demandei reconhecimento e afagos. Agrego-me aos juízes conscientes de que seus papeis não demandam “reconhecimentos”, pois, por si mesmos, são cônscios de que cumprem seus deveres. O sistema de subserviência e premiação que permeia as relações no âmbito dos tribunais brasileiros é expressão da infantilidade dos membros do tribunal que demandam ser reconhecidos como chefes e daqueles que a isto se submetem e recebem “afagos” em retribuição pelo comportamento submisso. Não fui adestrado com recompensas. Sou insubmisso, mas capaz de qualquer comportamento necessário para o diálogo e a alteridade. O que inadmito são emanações de lugares que se acreditem hierarquicamente superiores, notadamente no seio da magistratura onde todos somos igualmente magistrados, titulares apenas de competências distintas e exclusivas.
Vivemos tempo no qual se semeiam ódio e desprezo aos excluídos. Não podemos ser contaminados por estes sentimentos se desejamos ser justos. Em tempo no qual se difunde o ódio e se difunde o gozo com o sofrimento dos vulneráveis, sou ideologicamente comprometido com a realização da justiça. Sou compassivo, porque em mim desperta mal estar a infelicidade de outrem ou a injustiça com alguém. A ordem excludente e genocida que pretendem instituir não pode permear nossas condutas, porque havemos de pugnar por justiça que nos qualifique como civilidade.
Nunca busquei a neutralidade. Sempre me posicionei diante da vida. Juiz neutro seria se não pensasse, porque todo juízo é uma tomada de posição. Nunca deixei de pensar, nem me socializei seguindo a correnteza, tal como peixe morto na corredeira. Quem desiste de pensar e adota posição de neutralidade delega a outrem que pense por ele, e isto não é papel compatível com quem exercita a relevante função de Estado de realização da justiça.
São odiosas as ciladas judiciais ou as decisões de emboscada. Quem há de estabelecer estratégias para o atingimento de seus fins são as partes. Quando os juízes o fazem, deixam de ser juízes e assumem o papel de algozes.
É uma honra ter percorrido os degraus da carreira da magistratura fluminense, buscando compreender os escaninhos, as veredas e os labirintos que compõem a estrutura institucional do judiciário, permeados pelas singularidades condicionadas pela formação social brasileira. E pela burocracia estatal.
Muito obrigado!
Rio de Janeiro, 17 de maio de 2021.
João Batista Damasceno
Link do discurso:
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia.
MAZOLA
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