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Diálogo de Estátuas – Uma conversa surrealista entre Drummond, Caymmi, Pessoa e Clarice Lispector – por Wander Lourenço
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Diálogo de Estátuas – Uma conversa surrealista entre Drummond, Caymmi, Pessoa e Clarice Lispector – por Wander Lourenço

Por Wander Lourenço

Eram meados de dezembro do ano da graça de 2024 e a bela, imperiosa e decadente Copacabana, com os seus “cadilaques buzinando alto” e as suas donzelas bronzeadas por “óleos odoríficos” estendidas na areia da praia, consoante predissera o velho Braga; e que, outrora, transpirava uma brisa à Jonny Alf no Beco das Garrafas, quando um episódio ocorrido em seu ilustre e afamado calçadão, rabiscado pelas marés de pedras lusitanas assinadas pelos calceteiros lisboetas; e, posteriormente, repaginadas pelo paisagista Burle Marx, assaz chamou a atenção deste cronista mui curioso com a inusitada e atípica (quiçá, surrealista!) movimentação não de contumazes pedestres anônimos, visto que estas personagens não eram indivíduos de carne e osso; mas, sim, de aço, ferro e bronze.

Logo, caros leitores, eu convido-vos aos fatos ainda que ilusionistas, porque sem eles ai de ti, ó crônica!, não passarás de um conto de ficção. Dera-se que a estátua do compositor Dorival Caymmi, que saudara a “Princesinha do mar” em antológica canção praieira; e que, por esta razão, justifica-se a justa homenagem, se aproximou da escultura vizinha do bardo Carlos Drummond de Andrade, para dois dedos de prosa sobre as amenidades da vida e a difícil arte da sobrevivência (humana e artística), em tempos bélicos no Oriente Médio, na antiga União Soviética, em Áfricas; e, sobretudo, na Zona Sul desta tão declamada São Sebastião do Rio de Janeiro.

–– Boas noites, meu velho Drummond. –– cumprimentou-o o idealizador da Maracangalha pátria e utópica, baianamente, com a sua voz docemente arrastada, diante das retinas fatigadas do poeta mineiro que, já em seu período pré-estático, confessara trazer consigo oitenta por cento de ferro e tristezas na alma itabirana.

–– Veja quem me veio fazer companhia nesta calorosa primavera em disfarces de verão, que nos aquece e excita o espírito boêmio a petiscar as empadinhas de camarão d’O Caranguejo, já consagradas em crônica de Luís Fernando Veríssimo, ou os apetitosos bolinhos de bacalhau d’A Marisqueira, mui bem acompanhados de um bom chope gelado sem colarinho branco… –– surpreendeu-se o trovador modernista, agradavelmente. –– Que bons ventos o tragam, meu nobre amigo Dorival Caymmi!…

–– “Vamos chamar o vento… Vento que dá na vela / Vela que leva o barco / Barco que leva a gente / Gente que leva o peixe / Peixe que dá dinheiro, Curimã.” –– cantarolou o menestrel soteropolitano, com o seu violão silente debaixo do braço, excitado pela alusão o tradicional recinto da boêmia.

–– Ah, meu nobre amigo Caymmi, perdoe-me por não saudá-lo com o entusiasmo que a sua cordial presença recomenda, mas é que ando meio aborrecido porque mais uma vez um gatuno desnaturado furtou-me os óculos de bronze, acentuando-me a miopia crônica que me assola covardemente, prejudicando o hábito de leitura do noticiário impresso em jornal. –– lamentou-se o vate queixoso, diante da recorrência da ladroeira e vandalismo.

–– Por este puro e único motivo de gatunagem, nem por uma emenda legislativa forjada por Arthur Lira ou decreto judiciário subscrito pelo Alexandre de Moraes, o Yul Brynner do STF, eu me desgrudo do meu pinho de cordas que, no mercado branco do crack, decerto, deve de estar valendo um dinheirão, meu caro Poeta.

–– No que fazes muito bem, Caymmi, porque, diz que, com a pós-pandemia; e, sobretudo, com o descaso das autoridades fluminenses de plantão, a população de rua quase que quadruplicou em nossa querida Copacabana, que tu cantaste com tamanha maestria. –– suspirou um nostálgico Drummond, com as reminiscências do tempo em que o bairro era considerado “um bom lugar, pra passear à beira-mar”. –– “Existem praias tão lindas, cheias de luz / Nenhuma tem o encanto que tu possuis / Tuas areias, teu céu tão lindo / Tuas sereias, sempre sorrindo.” –– rememorou o seresteiro ao estilo JK das Diamantinas tejucanas.

O suspiroso Dorival Caymmi pediu licença ao solícito Carlos Drummond de Andrade para sentar-se a seu lado, de modo que proseassem sobre o lastimável desamparo do espaço urbano mais democrático do Rio de Janeiro, com seus inúmeros botequins, sotaques e etnias, a Copacabana coeva, povoada por punguistas, mendicantes de toda sorte, cracudos, moças de fino trato e vida difícil, cafténs e traficantes de drogas.

–– Por obséquio, sinta-se convidado, meu ilustre vizinho Caymmi. –– ofertou-lhe o lugar Carlos Drummond de Andrade, educadamente. –– Tu sabes que o que mais tenho presenciado por estas paragens da orla copacabanense, para além dos delírios obscenos sussurrados ao pé do ouvido, quando as moçoilas casadouras ou não se assentam aptas ao instante de fotografia, meu caríssimo compositor? –– indagou-o, o enigmático áugure originário de Itabira do Mato Dentro.

–– A metafísica da perene solidão humana dos tempos contemporâneos, meu sublime Camões do século XX, diante da fotografia do insólito, que escorre e se esvai das almas perdidas em desalento, meu sublime e elevado Dante Alighieri da língua portuguesa. –– sofismou-se Caymmi.

–– Vossa Mercê, que sempre mui generoso com a obra literária alheia, olvida-se de sua original e valorosa contribuição ao cancioneiro popular pátrio. Entretanto, retorno ao assunto em voga, saiba que a humanidade desvairou-se, conforme diria o meu mestre Mário de Andrade em sua Paulicéia equidistante, como (contra)metáfora de um país a desmodernizar-se, de vento em popa, até devorar-se em bancarrota antropofágica, na acepção do vocábulo… –– inconformou-se Drummond.

–– Tu sabes que ainda há pouco um sujeito alucinado de sotaque lusitano, trajado de sobretudo negro de veludo e chapéu de feltro, ao me abordar aqui no Posto 6, segredou-me que são as lágrimas da poesia que adoçam as marés do oceano da vida em cais de saudade… –– confidenciou-lhe Dorival Caymmi.

–– E tu não o reconheceste, ó desavisado violeiro? –– inquiriu-o.

–– Confesso que me fez recordar a estátua simbólica de Fernando Pessoa, em frente ao restaurante A Brasileira do Chiado; no entanto, o homem das mil vozes não me dera tempo ao diálogo prosaico, haja vista que se apressou a desandar em direção ao Arpoador, creio que à procura do Tom Jobim, com intuito duma bossa nova à Alfama com vista para o Tejo ou à procura dum fado ipanemense menos melancólico… –– rendeu-se, amuado.

–– A mim, nem se deu ao trabalho de visitar-me… –– lastimara-se Carlos, o gauche.

–– Se dobrasse à esquerda, pura e simplesmente tropeçaria distraído num astro sem astrologias de nomeada Carlos Drummond de Andrade, o Poeta do Brasil. –– consolou-o Dorival Caymmi.
–– Por maus hábitos do conhaque e afins, quiçá tenha por predileção o Vinícius de Moraes, assim como sempre procedeu o chileno Pablo Neruda, quando visitava os sítios cariovcas. Não obstante, caso o Pessoa houvesse te reconhecido, Caymmi, era até provável que compusessem um samba alfacinha ou um fadinho da Bahia de São Salvador. – obtemperou Drummond de Andrade.

Neste ínterim, o espavorido Fernando Pessoa se achegara para reclamar de que, ao se encontrar com Antônio Carlos Jobim no Arpoador, resolvera-se por telefonar ao Vinícius de Moraes, a fim de que esticassem a boêmia noite afora pelos bares de Ipanema e Leblon, quando um ágil larápio meliante lhe furtara o telemóvel (Smartphone), rumando em disparada em direção a nem Deus sabe onde, ávido por se livrar da perseguição policial.

–– Pois que não me dera sequer tempo de mencionar o sítio de encontro com o Poetinha carioca… –– rezingara-se o inconformado luso-africano.

A estátua de Drummond, com a placidez que não lhe era característica, ao observar o atônito Fernando Pessoa inconsolado com a perda do objeto de comunicação, solicitara-lhe que se acalmasse pelo fato de que cordões de ouro, relógios e telemóveis tinham vida curta em posse dos proprietários neste território movediço e traiçoeiro, onde nem os reles óculos de bronze estão a salvo das mãos esfomeadas dos saltimbancos.

–– Pessoa, eis o poeta Drummond de Andrade, muito possivelmente, o seu mais inspirado discípulo e sucessor nas trincheiras poéticas desta última flor do Lácio, a Língua Portuguesa. –– apresentou-lhe Dorival Caymmi, antevendo um inesquecível encontro literário.

–– Carlos Drummond de Andrade!?!… –– espantou-se diante da singular e extraordinária apresentação orquestrada por Dorival Caymmi.

–– Jamais adivinharia que tu chegavas a tal patamar poético no Panteão da posteridade.

–– Um vosso admirador. –– assentiu Drummond, humildemente.

Ao passo que tranquilizavam Fernando Pessoa, o cantor Dorival Caymmi lembrou-se de que, no outro lado da Praia de Copacabana, mais especificamente no Leme, a estátua de Clarice Lispector ficaria satisfeitíssima, caso deliberassem por visitá-la para um trago de tabaco ou drink de vodka com água de coco, desde que não discorressem a respeito das atrocidades da guerra entre a Rússia do tirano Putin, o Macbeth do Kremilin, e a sua terra natal de uma infância perdida após o Nazismo hitleriano.

–– Mas os embusteiros do calçadão não poderiam nos assaltar novamente, a qualquer momento, durante o percurso até a grande ficcionista ucraniana? –– reagiu Pessoa, amedrontado com a violência citadina.

–– Não se preocupa tu, ó residente do Chiado, haja vista que com já o foste vilipendiado pela corja de bufões e histriões urbanos, um relâmpago não há de desabar jamais no mesmo lugar, meu insigne Pessoa. –– acalmou-o Caymmi.

–– Por isto não seja, Dorival Caymmi querido, porque os meus óculos já foram furtados pela enésima ocasião em pleno calçadão do Posto 6… –– replicou Carlos Drummond.

–– Mas telemóvel já não o tenho nem trago outro aparelho, ora pois.

De comum acordo, os três menestréis decidiram que se dirigiriam até o ponto da estátua de Clarice Lispector, desde que caminhassem de mãos dadas, de maneira que um protegesse o outro das intempéries do itinerário costeiro até o bucólico bairro do Leme.

Lá chegando, os trovadores solitários se depararam com a escritora deprimida e preocupadíssima, a pitar à Diadorim cigarro após cigarro, em companhia de seu épico e fiel cão Ulisses.

–– A que devo a honra de tão conspícuas visitações em tempos de pós-epidemia e batalha tão desigual e sanguinária, meus prezadíssimos companheiros das trincheiras da Literatura? –– abismou-se Lispector.

–– Viemos em solidariedade à tua nobre gente briosa e audaz, acossada pela pusilanimidade de um déspota facínora, insano e sangrento, Clarice. –– antecipou Drummond de Andrade, acariciando fronte e dorso do quadrúpede dócil.

A circunspecta Clarice Lispector mirou-os de soslaio; e, após tragar a fumaça do último cigarro, revelou-lhes toda agonia e aflição pelo sofrimento de seu povo aniquilado por um mandatário inconsequente, que apontava os mísseis e canhões em direção à OTAN, mas bombardeava com toda ênfase cabível num gesto inerme e cobarde a coirmã Ucrânia, como comprovação de poder bélico contra os Estados Unidos da América, sob a cumplicidade homicida da República Democrática da China.

A síntese clariceana desvendou-se como uma espécie de parábola metafísica entre Oriente e Ocidente, quando, não obstante, em sua concepção arguta e certeira, a exemplo de Caim (Rússia) e Abel (Ucrânia), assassinava-se o irmão consanguíneo, que se dissolvera mediante o fruto do pecado original capitalista.

Diante da premissa parabólica, os andarilhos Drummond, Caymmi e Pessoa se despediram, de modo a prosseguir em retorno a Copacabana, de mãos dadas (e pensas), diante da máquina do mundo majestosa e circunspecta entreaberta camonianamente, debaixo de um silêncio atroz, como se palmilhassem uma estrada pedregosa à beira-mar, ao som dos sapatos pausados e secos, que pisoteavam distraídos a ignomínia do gesto humano.

WANDER LOURENÇO é professor, cineasta, poeta, letrista e escritor. PhD em Literatura Comparada pela Universidade Clássica de Lisboa; pela PUC-GO; e pela UFMG. Doutor, mestre e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Produtor e diretor do documentários “Carlos Nejar, o Dom Quixote dos Pampas (2015); “Nélida Piñon, a Dama de Pétalas” (2017); e o “Cravo e a lapela: biografia de Ricardo Cravo Albin” (2021). Livros recentes: Escrevinhaturas – Poesia / Editora Elefante-SP (2022); e A República do Cruzeiro do Sul – Romance histórico / Editora Almedina (2023).

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