Redação

Promover a aglomeração de pessoas na fila dos colégios eleitorais não parece uma atitude sensata a ser tomada no auge da crise de saúde causada pela Covid-19 no Brasil. Por outro lado, se a intenção é manter o sistema democrático vivo e saudável, estender indefinidamente o mandato de prefeitos e vereadores até que a crise esteja resolvida — ainda mais quando as previsões para tanto estão cada vez mais distantes — também não é uma alternativa desejável.

Esse é o dilema que se impõe ao Congresso brasileiro e ao Tribunal Superior Eleitoral neste momento. O Senado aprovou, por sugestão do TSE e especialistas em saúde, o adiamento das eleições por um mês, mas ainda falta a votação na Câmara, onde não há consenso.

Mas o Brasil não é o único país do mundo a enfrentar esse impasse, de modo que várias entidades não-governamentais têm acumulado expertise para aconselhar governos e população sobre os melhores caminhos para garantir, ao mesmo tempo, a saúde pública e as instituições democráticas.

É o caso da International Foundation for Electoral Systems (Ifes), no qual atuam a brasileira Fernanda Buril e a neozeolandesa Katherine Ellena. Em entrevista conjunta à ConJur, elas comentaram a experiência já acumulada na assessoria às eleições em outros países e sugeriram a adoção de medidas para garantir que o processo eleitoral seja feito com segurança e sem piorar o quadro de saúde pública.

Formada pela Faculdade Integrada do Recife e com doutorado em ciência política pela Washington State University, Fernanda Buril é pesquisadora sênior do Centro de Pesquisa Aplicada da Ifes, que produz material para auxiliar a elaboração de políticas públicas para transições democráticas e operações eleitorais. Antes de integrar o centro de pesquisa, atuou em projetos na Guatemala, El Salvador, Bolívia, México, Nicarágua e República Dominicana.

Katherine Ellena tem mestrado em Direito com foco em legislação médica e bioética. Na Ifes, atua como consultora jurídica global, e atualmente pesquisa o impacto dos poderes emergenciais dados aos governos no combate à corrupção. Antes disso, coordenou os programas de reforma eleitoral no Afeganistão e Paquistão, como a responsável pela atuação da Ifes na Europa e Ásia.

Leia os principais pontos da entrevista:

ConJur — É melhor promover eleições durante uma crise de saúde ou adiá-las até que seja mais seguro?
Buril e Ellena —
 No começo de 2020, 106 países e territórios tinham marcado pelo menos uma eleição nacional ou regional. Antes da propagação acelerada da Covid-19 pelo planeta, algumas dessas eleições foram feitas, e em alguns casos (como a Coreia do Sul, Guiné e Mali), elas continuaram mesmo durante o pico da pandemia. No entanto, até hoje a reação mais comum na maioria dos países tem sido a de adiar o pleito. A decisão de adiar uma eleição é importante e muitas vezes necessária do ponto de vista da saúde pública.

De todo modo, essa está longe de ser uma decisão simples do ponto de vista constitucional. As medidas estão sendo planejadas em meio a um cenário político carregado, e os adiamentos, mesmo que sejam necessários, podem ser lidos como tentativas de beneficiar um campo do espectro político em detrimento dos outros.

timing do adiamento das eleições também é um fator a ser considerado. Um adiamento que seja anunciado no meio do processo eleitoral (por exemplo, depois que o registro de eleitores e o cadastro dos candidatos já tenha sido encerrado) pode resultar em complexidades adicionais.

Uma vez que o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos também prevê que as restrições de direitos devem ser temporárias, a decisão sobre a nova data das eleições pode ser complexa, especialmente se a crise sanitária e de saúde continuar piorando.

ConJur — Como é uma campanha eleitoral quando as pessoas estão fazendo isolamento social? Como os candidatos apresentam suas propostas ou dialogam com os cidadãos durante uma epidemia?
Buril e Ellena —
 Com os lockdowns e limitações a aglomerações, as campanhas eleitorais tradicionais foram interrompidas em diversos países. Muitos candidatos não puderam fazer comícios, conversar diretamente com a população ou promover eventos para arrecadar fundos. Essas limitações tendem a ter um impacto maior para os novos candidatos, que têm menos chances de se apresentarem e de apresentarem suas propostas.

Quem já tem mandato está mais exposto (para o bem ou para o mal) com a pandemia, o que inclui mais entrevistas na imprensa e comunicação direta com o público, durante a resposta governamental à crise.

O que também estamos vendo é a consolidação de uma tendência que já existia — maior ênfase na campanha e mobilização online, especialmente nas redes sociais. Podemos esperar que candidatos e partidos que aprendam a se adaptar melhor ao mundo digital terão vantagem nesse contexto, especialmente entre o eleitorado jovem.

ConJur — O isolamento social tem impacto na legitimidade das eleições?
Buril e Ellena —
 Não necessariamente. Por exemplo, alguns estados nos EUA votam inteiramente por correspondência, com as devidas medidas de segurança e confidencialidade, em um sistema que tem total confiança da população. Alcance público, comunicação e educação sempre são importantes em uma eleição, mas são especialmente críticos devido às modificações com potencial efeito impeditivo que a pandemia deve causar sobre a taxa de participação dos eleitores.

Se a taxa de comparecimento for muito baixa, haverá implicações na percepção de legitimidade dos mandatos. Também é preciso monitorar a diferença do comparecimento entre áreas urbanas e rurais.

As capitais tendem a ter maior concentração populacional, e mais casos de Covid-19, então a diferença deve ser mais acentuada para os eleitores das capitais. O impacto também pode ser desproporcional entre minorias e jovens.

ConJur — É desejável promover mudanças legislativas temporárias no campo eleitoral para se adaptar à crise da Covid-19?
Buril e Ellena —
 Há riscos e oportunidades. Entre os riscos, está a possibilidade de abuso de poder, naturalmente concentrado nas mãos dos governos durante cenários de calamidade, e o potencial de que os governantes tentem usar essa vantagem para avançar em sua própria agenda política. Assim, quaisquer mudanças nas leis eleitorais devem ser consideradas com muito cuidado.

Medidas extraordinárias que limitem a participação pública ou expandam poderes emergenciais devem ser explicitamente temporárias, com inclusão de cláusula de término, por exemplo.

Em relação às oportunidades da crise para o fortalecimento da democracia, algumas mudanças operacionais podem aumentar a emancipação, especialmente de setores vulneráveis ou marginalizados da sociedade, e nesse caso as mudanças devem se tornar permanentes.

Sejam as mudanças procedimentais, regulatórias ou legislativas, a consulta pública continua sendo essencial. Especialmente quando um novo processo eleitoral está sendo testado, ou quando um processo já existente em caráter limitado está sendo expandido para mais participantes.

ConJur — Temos exemplos nacionais e internacionais de mudanças legislativas temporárias sendo adotadas em outras áreas do Direito, mas elas foram necessárias no caso de eleições em outros país? Que tipo de mudanças é recomendado adotar?
Buril e Ellena —
 É provável que pelo menos algumas mudanças básicas sejam necessárias em qualquer país que esteja promovendo eleições no curto e médio prazo.

Os agentes públicos precisam começar a pensar em quais serão essas modificações, e quais mudanças legislativas ou regulatórias serão necessárias. Esses ajustes devem ser necessários em todas as etapas do processo eleitoral — do cadastro de eleitores à contagem de votos. Conforme essas mudanças sejam promovidas, será importante garantir que os princípios eleitorais básicos sejam preservados, sem criar instabilidades.

ConJur — O Brasil é um país de dimensões continentais, com mais de 200 milhões de habitantes, onde o voto é obrigatório e a taxa de contaminação pelo coronavírus não dá sinais de ceder. Existe um jeito de obrigar as pessoas a votar sem agravar a crise de saúde pública?
Buril e Ellena —
 Vários países enfrentaram desafios para promover eleições durante a crise de Covid-19 e muitos outros tiveram que adiar as eleições, mas alguns exemplos recentes, como a Coreia do Sul, mostram que é possível fazer eleições seguras.

Obviamente, o contexto das eleições na Coreia do Sul é diferente do Brasil, já que a Coreia tinha conseguido achatar a curva de transmissão e o número de novos casos estava em dois dígitos quando a eleição foi feita.

É crucial levar em consideração esses fatores contextuais na hora de decidir se levar adiante as eleições é mesmo a melhor opção, incluindo a taxa de transmissão e a capacidade hospitalar do país para oferecer tratamento a quem precisa.

A estrutura legislativa de alguns países também permite a votação sem interação entre as pessoas, como é o caso do voto por correspondência, por exemplo.

A Ifes publicou um artigo, “Safeguarding health and elections“, com diretrizes para a promoção de diferentes atividades durante a crise da Covid-19, garantindo a mitigação dos riscos de transmissão.

ConJur — Nesse contexto de voto obrigatório, as pessoas infectadas ou dos grupos de risco podem ser dispensadas de participar das eleições? Ou as pessoas que cuidam de infectados ou de pessoas do grupo de risco? Como o governo pode fazer esse controle?
Buril e Ellena —
 A prioridade deve ser a facilitação de voto para essas pessoas de forma segura. Na Coreia do Sul, por exemplo, as autoridades eleitorais promoveram mudanças administrativas para aumentar a votação por correspondência, que já tinha previsão legal, e estendeu-a aos pacientes infectados pela Covid-19 e para os quarentenados.

ConJur — Como garantir a higiene em votações com a urna eletrônica?
Buril e Ellena —
 Há uma série de cuidados básicos que devem ser tomados independentemente do sistema de votação adotado. No dia das eleições, os eleitores devem higienizar as mãos antes e depois de votar, manter pelo menos 1,5 metro de distância uns dos outros, e evitar contatos pessoais, bem como contatos desnecessários com superfícies e objetos de uso comum (como maçanetas, cadeiras, etc). Eleitores e mesários devem usar equipamento de proteção pessoal para prevenir a infecção por fluidos.

No caso da urna eletrônica, como ela será manuseada por vários eleitores, algumas medidas adicionais devem ser adotadas. As comissões eleitorais devem perguntar aos fabricantes da urna sobre quais produtos usar para a higienização do equipamento sem danificá-lo.

Como alternativa, as autoridades também podem providenciar um plástico transparente para cobrir o teclado e a tela da urna, que seria substituído por um novo plástico para cada eleitor.

ConJur — É possível promover um esforço nacional coordenado para a realização de eleições seguras e confiáveis quando o Executivo nacional não consegue entrar em acordo nem com os governos estaduais, nem com o Legislativo e o Judiciário, para coordenar a resposta à crise de saúde?
Buril e Ellena —
 A responsabilidade de promover mudanças operacionais e legislativas potencialmente difíceis varia entre os países, e pode ser tornar delicada, especialmente se não há previsão legal para o adiamento.

É essencial que as comissões eleitorais e as autoridades públicas, em todo o mundo, tomem decisões sensatas e bem-informadas, em articulação com as autoridades de saúde, e levando em consideração as especificidades do sistema público de saúde, nível de propagação da doença e outros fatores contextuais.

Em qualquer caso de mudança na legislação eleitoral, é preciso consultar autoridades competentes para examinar as opções oferecidas e os riscos envolvidos. Se há previsão constitucional tanto para o adiamento das eleições quanto para situações emergenciais, mas sem explicitar como esses fatores interagem, cabe à Suprema Corte ou outro responsável pela interpretação constitucional avaliar essas questões.

ConJur — É possível, ou mesmo desejável, regular as redes sociais para garantir a justiça das eleições?
Buril e Ellena —
 Há uma série de medidas adotadas pelos governo sobre a regulação da mídia tradicional nos processos eleitorais, mas as regras normalmente não são transponíveis para as redes sociais.

Quando se fala em regulação das redes, as pessoas pensam que estamos falando só de regulação de conteúdo — mas essa não é a única variável envolvida, e a regulação do conteúdo quase sempre leva a restrições desproporcionais e perigosas à liberdade de expressão e imprensa.

No entanto, vários países têm debatido ou adotado medidas com potencial benéfico para regular o uso das redes sociais, no sentido de limitar ou garantir transparência aos gastos de campanha alocados nas redes sociais; impedir a lavagem de dinheiro na publicidade política; restringir o uso das redes estatais para promoção de campanha; obrigar as empresas a oferecer espaços gratuitos para campanhas educacionais sobre eleições; e limitar a possibilidade de alocação de anúncios políticos por parte de estrangeiros, entre outros.

ConJur — Há algum exemplo de regulação das redes sociais que tenha sido bem-sucedida?
Buril e Ellena —
 Existem categorias de regulação (como as que acabamos de citar) que valem a consideração. No entanto, em última instância, cabe às autoridades nacionais decidir o que é apropriado para o contexto do próprio país. As normas já existentes e a configuração institucional do país certamente vão influenciar essa discussão.

ConJur — Qual é a avaliação da Ifes sobre a democracia brasileira? Ela já pode se considerar “consolidada”?
Buril e Ellena —
 A Ifes não faz comentários sobre países específicos. No entanto, o que podemos dizer, de forma geral, é que todas as democracias, não importa o quão consolidadas sejam, precisam de cuidado constante. As ameaças aos princípios democráticos estão sempre evoluindo. Pela primeira vez em quase duas décadas, a maioria dos países (92, segundo o V-Dem 2020 Democracy Report) é caracterizada como “autocracia”, e essa onda tem afetado mesmo regiões nas quais se considerou, por muito tempo, que as democracias estavam consolidadas.

Nenhum país está imune aos retrocessos democráticos, e a manutenção de um sistema saudável exige participação pública ativa e inclusiva, políticas públicas fortes e funcionamento de mecanismos de fiscalização e controle.


Fonte: ConJur, por Luiza Calegari