Por Lincoln Penna

Usos e abusos são expressões corriqueiras que são próprias para quem deseja caracterizar ou denunciar a utilização indevida ou imprópria que se faz de algo ou de alguma coisa. São vários os casos e pouparei a quem estiver interessado nestas linhas de exemplificar essas situações. Quero, no entanto, situar o que me interessa: o uso e o abuso do vocábulo democracia. Substantivo que por si só contem um sentido derivado da origem da palavra, a sua associação com diversos adjetivos tem provocado justificada confusão conceitual.

Vamos ao que interessa. A democracia ao ser invocada por diversas correntes do pensamento político acaba por se ajustar a elas, dado o emprego de qualificações para soar palatável a sua aceitação e, assim, infundir na consciência das pessoas às ideias veiculadas. Ao proceder dessa maneira os seus ideólogos emprestam valor a regimes ou governos que façam valer a sua concepção de democracia. Basta citar os dois exemplos típicos no plano ideológico: as democracias liberais e burguesas e as democracias socialistas e proletárias.

Essa capacidade de ser usada por sistemas político-ideológicos tão distintos dota a democracia de um fascínio por si só louvável. Isto se explica por causa de sua filiação ao povo, uma vez que o termo implica governo ou poder do povo, como dos demos da cultura política da Grécia Antiga. Assim, a busca da proximidade possível com a origem etimológica da palavra assume essa dimensão para os dois modos ou sistemas que, no passado recente, provocaram as tensões da Guerra Fria, que embora não superada inteiramente não mais tenciona as relações no campo da geopolítica mundial como antes.

Os embates em nome da democracia ao contrário do que muitos pensam têm sido ultimamente mais presentes no cenário internacional. E essa realidade tem estado mais manifesta nas políticas nacionais de quase todos os países do mundo. São raros os governos que deixam de se associarem à defesa da democracia como uma salvaguarda para regimes geralmente muito poucos democráticos, quando não antidemocráticos. O que significa o apreço que ela representa em termos de definição de uma forma de governo. Trata-se, pois, de um avanço na medida em que há uma crença de que a sua representação importa para o credenciamento de poderes instituídos.

No Brasil, em todas as grandes crises políticas da República, principalmente a partir de 1930, a questão democrática esteve fortemente presente. Seja nos arroubos discursivos de quem a sustentou nominalmente para justificar suas iniciativas e defender-se de seus opositores, ou usada como recurso para ações golpistas.

Destacadas figuras foram alvos da democracia instrumental. Por não terem cumprido os ritos democráticos, ou por terem ultrapassado seus limites, sempre de acordo com os seus detratores, uma vez que a democracia ou é adotada ou é usada como cobrança de quem no fundo deseja se apossar do poder político. Daí os usos e abusos da democracia para justificar as constantes interrupções da ordem legal.

Hoje estamos diante de um governo ditatorial em suas intenções e em suas práticas políticas, cujo compromisso com a democracia é nenhum. E, no entanto, tem sido alvo de permanentes demonstrações de apoio em suas investidas contra as instituições democráticas por parte de seus seguidores a demonstrarem total desprezo pela democracia e apego à volta da ditadura. E o pior, em nome da democracia e contra o comunismo. De novo, a democracia servindo como pretexto para sua própria negação na prática política.

Fora a demência de quem assim se manifesta, a democracia passou a significar a vacina contra a ameaça da democracia social, o pavor do comunismo está aí, a de uma sociedade socialista temida por quem não deseja qualquer tipo de mudança estrutural. As diferenças entre liberdades e igualdades no trato das questões sociais foram e continuam a ser motivo de freqüentes atritos entre os dois mundos ideologizados existentes. Contudo é sempre bom lembrar, não há liberdade sem igualdade e esta é a real representação da liberdade, pois sua existência real não é uma concessão, mas sim uma conquista permanente.

Uma coisa é certa, a democracia como arranjo político, como conciliação dos contrários numa sociedade marcadamente desigual não tem mais vez. Ou bem enveredamos para a democracia fundada no bem comum, que garanta a dignidade de todos ou estaremos reféns de uma falsa democracia, a interessar somente aos que usufruem do trabalho alheio. Na atual fase histórica da sociedade brasileira a democracia que deveremos disputar é aquela que garanta direitos aos que produzam riqueza.

Defendamos a democracia social e libertária para os nossos povos.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.