Por Roberto Amaral –
O Brasil é, hoje, um país à deriva caminhando de mal a pior sob a regência de um Bonaparte de hospício cercado de áulicos desvairados e protegido por uma guarda pretoriana. Uma economia que de solavanco em solavanco caminha para trás, penando sob a irresponsabilidade de um neoliberalismo genocida.
Nossa democracia pede socorro, diariamente ameaçada por declarações golpistas do presidente da república e generais de seu entorno. Um indicador da crise institucional é a necessidade de porta-vozes das forças armadas estarem a proclamar que não pretendem reinstaurar uma ditadura militar. E isso nos dizem como se estivessem abdicando de uma faculdade! Não fica por menos o judiciário, quando um ministro do STF se vê no dever de ditar nos autos de medida liminar que golpe de Estado é inconstitucional.
É este o preço que as degeneradas classes dominantes brasileiras nos impuseram para impedir a continuidade do projeto petista, que, minimamente reformista, simplesmente ensaiava aproximações com a socialdemocracia dos países capitalistas desenvolvidos.
Essa tragédia foi construída, arquitetada, concertada, operada e sustentada pelos comensais da casa-grande, com a pusilânime contribuição dos que se omitiram entre o primeiro e o segundo turnos de 2018: o grande capital, o agronegócio, os industriais suicidas, a grande imprensa (que repele a boçalidade do capitão, mas segue defendendo a “pauta Guedes”), o ministério público, o poder judiciário tardiamente arrependido, o aparelho repressivo de um modo geral (compreendendo as polícias de toda ordem), e as forças armadas, a última casamata de Bolsonaro.
O general chefe do GSI ameaça o STF com “consequências imprevisíveis”; o general ministro da defesa (ocupando cargo destinado a um civil) acompanha o capitão insubordinado em ato contra o STF e, com o general vice-presidente e o capitão seu chefe assina nota em que advertem que as forças armadas “não vão cumprir ordens absurdas” e “julgamentos políticos” – leia-se apuração dos crimes de Bolsonaro, cassação, por fraude e vício, da chapa presidencial pelo TSE ou impeachment pelo Congresso.
As forças armadas, tão ciosas da lei e da ordem, de que se julgam únicas guardiãs, não têm, porém, vistas para enxergar o aparelhamento das polícias militares pelo que há de pior no bolsonarismo; tampouco se dão conta do crescimento das milícias, um dos braços armados da família presidencial. E terminaram por se tornarem cúmplices do presidente sedicioso, quando, na escatológica reunião revelada ao público por decisão do ministro Celso de Mello, o capitão, entre um impropério e outro, anunciou que estava distribuindo armas para a população. Com efeito, no dia seguinte à confissão desse delito, o ministro da defesa assinou portaria aumentando o limite da posse de armas e munições por civis e clubes de tiro.
O fato a considerar é que as forças armadas, especialmente o exército, transformaram-se em fator de instabilidade das instituições democráticas e, haja o que houver daqui em diante, não conseguirão fugir do rigoroso julgamento da história.
Elas sabem disso.
A consciência dessa obviedade começa a preocupar significativos setores da caserna. A resposta, até aqui, porém, não visa ao desembarque do governo – de indisfarçável marca militar –, pois trata, tão-só, de tentar recuperar a imagem do exército.
Aparentemente escrito com o concurso de muitas mãos, o artigo “O Exército dos brasileiros” (O Estado de S. Paulo, 19/06/2020), do general da reserva Alberto Cardoso, deve ser lido a partir dessa perspectiva e desses objetivos. É o outro lado dos desastrados manifestos de oficiais que guardam o ócio bem remunerado da reserva e intentam tumultuar ainda mais o perigoso cenário político brasileiro.
O general Alberto Cardoso é um homem sério e culto, que honrou a chefia do Gabinete de Segurança Institucional no governo FHC (o que não podemos afirmar relativamente ao atual titular da pasta), e por isso merece o nosso respeito. Mas seus argumentos não resistem ao confronto com os fatos.
O general nos fala em “defesa da Pátria” e “garantia dos poderes constitucionais”. Proclama a “independência [das forças] em relação aos partidos que ocupem o governo”, quando o exército participou ativamente na conspiração antipetista e anti-lulista que detonou o governo Dilma Rousseff e abriu caminho para a eleição do capitão, que apoiou.
O militar sabe, igualmente, que seus camaradas dizem-se apartidários mas anunciam veto a qualquer emergência dos partidos de esquerda ao poder, como antes se opunham a Getúlio Vargas e ao trabalhismo. Quem lhes outorgou tal poder, só conhecido nas ditaduras e nas monarquias absolutistas? A “Pátria”?
Mas, o que é a “Pátria”, assim com maiúscula, general? Na Pátria dos militares cabem os pobres, os negros, os deserdados, os sem teto e os sem terra, os malvistos, os descamisados, os revolucionários, os reformistas, os esquerdistas, os socialistas, os comunistas, os pacifistas, os internacionalistas?
Ou “Pátria”, para os senhores, é apenas uma expressão territorial, um espaço que independe da nação, que se pode tomar do mais fraco? Ela compreende nossas riquezas que estão sendo dilapidadas, o pré-sal entregue na bacia das almas ao apetite insaciável das petroleiras internacionais, a base de lançamento de foguetes de Alcântara, doada aos EUA?
A “defesa da Pátria” também compreende a defesa de nossos princípios e de nossa dignidade? Por que, então, respaldar uma política de subalterna adesão aos interesses, inclusive estratégico-militares, de outra potência? A “Pátria” compreende os índios? No entanto os comandantes de hoje, esquecidos das lições legadas por Rondon, nada nos dizem diante da política de extermínio de que nossos índios são vítimas no governo que controlam. A defesa da Pátria (que ainda não definimos o que seja) também compreende a defesa do meio ambiente e da natureza de que tanto dependemos? No entanto nada é feito diante da política predatória do governo chefiado pelo capitão. Pátria compreende a vida? Então por que aceitar a política genocida emprestada pelo governo diante da pandemia, prática criminosa que já consumiu mais de 50 mil vítimas fatais, e que hoje é chefiada por um general da ativa, como da ativa é o general chefe da Casa Civil da presidência da República?
Digamos, preclaro general, que a Constituição é a vontade da Pátria. Por que, então, os senhores a rasgaram em 1937 e em 1964, tentaram rasgar em 1961 e a ameaçam hoje?
Os senhores nos falam muito em “defesa da ordem”, falavam muito em 1964 e agora voltam ao tema. Trata-se da defesa do que aí está: concentração de renda, desemprego, fome, ausência de saneamento, destruição da escola pública, especulação financeira, sonegação de impostos, os privilégios da casa grande em contraposição ao desemprego?
Diz-nos o general Alberto Cardoso que o exército se prepara para a guerra e o combate à “insurreição interna”. Como preparar-se para a guerra se a base de qualquer força, o sistema de ciência e tecnologia, chefiado por um oficial, está sendo desmontado?
O que é mesmo “insurreição interna”? O golpismo militante do capitão e suas milícias, ou a emergência das massas, contra a qual as forças armadas sempre se arregimentam?
Terá sido “insurreição interna” a revolta da chibata? Ou Canudos? O que era aquela aldeia de camponeses que o exército massacrou, a tanto custo? Diante da ignomínia o exército ainda considera bandido o beato Antônio Maciel e heróis os coronéis Moreira César, incompetentes e bárbaros?
O que significa a defesa “da lei e da ordem”, de que os militares são tão ciosos? É preciso definir bem claramente em uma democracia. Em nome da “lei e da ordem”, ou para calar uma “insurreição interna” (o pretexto varia segundo o talante de quem empunha a baioneta), o governo de D. Maria, a louca, desterrou e assassinou os heróis da Inconfidência Mineira, germe de nossa independência, e em 1825 seu neto mandou enforcar o Frei Joaquim do Amor Divino, o Frei Caneca, herói e mártir da república, que os senhores proclamariam no golpe de Estado de 15 de novembro de 1889!
Em nome da “lei e da ordem” os senhores destruíram a ordem constitucional em 1964 e nos impuseram 21 anos de ditadura.
O general fala na “capacitação continuada dos oficiais e sargentos”. É difícil aceitar como competente uma formação de oficiais que produz figuras deletérias como o brigadeiro João Paulo Burnier, ou o cel. Ustra, ou o sargento Guilherme do Rosário e o Capitão Dias Machado (terroristas frustrados do atentando do Riocentro), ou o grotesco general Newton Cruz, ou o general Sylvio Frota, ou o general Eduardo Pazuello, para quem o estado do Amapá está no hemisfério Norte. E como acreditar na proficiência de ensino que produz um capitão como Jair Messias Bolsonaro?
Lamentavelmente, a Pátria não está tranquila quanto aos compromissos de lealdade democrática que lhe devem os funcionários aos quais, para sua defesa, confiou o monopólio da força.
E veja, general, não discutimos os pavorosos crimes cometidos pela repressão militar durante a ditadura que os senhores implantaram em 1964.
ROBERTO AMARAL – Escritor, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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