Por Gabriela Moura de Oliveira –
Glória era proibida de trabalhar. Janete, todas as noites, era agredida. Mia, diariamente, era chamada de vagabunda e imprestável. Mirela era forçada a praticar relações sexuais. Fernanda, após tentar romper o relacionamento, foi morta.
Os casos acima apresentados são a realidade das vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher, os quais são reproduzidos, todos os dias, em qualquer local do país.
Segundo a pesquisa “Violência contra a mulheres em 2021” realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em média, uma mulher é vítima de feminicídio a cada 07 (sete) horas.[1]
Entre os meses de março de 2020 a dezembro de 2021, ou seja, ao longo do período marcado pela pandemia de covid-19, foram 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino.[2]
A preocupação com essa dura realidade vivida por milhares de mulheres ao redor do mundo se iniciou com a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher em 1979. A referida Convenção foi amplamente aderida, tendo sido ratificada por 186 Estados até 2010.[3]
Como objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS), a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) clamou pelo fim da violência contra as mulheres, com o estabelecimento definitivo da igualdade de gênero e do empoderamento feminino.[4]
Embora promulgada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) em 1996, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2001, em virtude de sua omissão no caso Maria da Penha, vítima de violência doméstica e de duas tentativas de homicídio por seu marido, as quais a deixaram paraplégica. O caso mencionado serviu de referência para a criação da Lei nº 11.340/2006, tendo, inclusive, seu nome.[5]
A Lei Maria da Penha prevê a aplicação de medidas protetivas de urgência, com o intuito de assegurar a integridade física e psicológica da vítima de modo a afastar o agressor e atenuar a situação de risco vivenciada. Esse afastamento pode ocorrer de três modos distintos, de forma cumulativa ou não a depender do caso concreto, quais sejam: 1) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; 2) proibição de aproximação da vítima e seus familiares; 3) proibição de contato por qualquer meio de comunicação.[6]
O Manual de rotinas e estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estabelece que as medidas protetivas de urgência devem ser deferidas enquanto perdurar a situação de risco para a vítima, uma vez que a Lei nº 11.340/2006 não estabelece o prazo de duração das referidas medidas.[7]
Foram grandes os avanços quanto à proteção da mulher ao longo dos anos no âmbito nacional. Estima-se que apenas em 2022, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tenha deferido mais de 15 (quinze) mil medidas protetivas.[8]
Durante a pandemia, foi desenvolvido o aplicativo “Maria da Penha virtual”, com acesso por meio de link, para que as vítimas pudessem solicitar medidas protetivas quando impedidas de se deslocar. Atualmente, essa ferramenta é usada por todos os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Estado do Rio de Janeiro.[9]
O Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid) aprovou dois enunciados emblemáticos nos últimos anos. O enunciado 37[10], estabelece a irrelevância de procedimento investigatório criminal para a concessão de medidas protetivas, ratificando a sua autonomia. Do mesmo modo, o enunciado 45, reconhece que na ausência de outras provas, a palavra da vítima, de forma exclusiva, servirá como base para o deferimento de sua proteção pelo Estado.11
Além disso, após a concessão de medida protetiva, a vítima ao se sentir ameaçada, tem à sua disposição a Patrulha Maria da Penha, a qual é regulada de maneira peculiar em cada Município, a fim de garantir a segurança da vítima em razão de sua vulnerabilidade, acompanhando-a enquanto vigorar a medida protetiva de urgência, caso assim entenda o magistrado.
Nesse sentido, diversas foram as providências legislativas e jurisdicionais efetivadas para ampliar o alcance protetivo da mulher. Entretanto, o dia-a-dia forense demonstra a ineficiência das ferramentas aplicadas.
Diante de tantos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o deferimento de medidas protetivas se tornou parte da rotina do Poder Judiciário nacional com reflexo na aplicação de medidas protetivas genéricas, sem que haja fiscalização na prática.
Não obstante, um curioso caso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ocorreu recentemente, quando após intimado por hora certa, o agressor enviou pelo aplicativo de Whatsapp uma foto do mandado de intimação rasgado ao Oficial de Justiça a ofender e a ameaçar a vítima de morte. Neste caso, o réu continua em liberdade e a vítima em cárcere em sua própria casa, estando incomunicável por ter desativado sua linha telefônica dada a quantidade de mensagens recebidas pelo agressor, ainda que deferidas medidas protetivas de proibição de contato e aproximação.
Portanto, os papéis se encontram invertidos, pois ao mesmo tempo em que a vítima possui medidas protetivas a favor de si, ela se encontra enclausurada em sua residência por não se sentir segura ao sair de casa.
Frisa-se que a mencionada Patrulha Maria da Penha, responsável por fornecer assistência às vítimas com medidas protetivas deferidas, funciona no Município do Rio de Janeiro das 6h às 18h. Ocorre que, no caso acima abordado, a vítima está em iminente risco de vida durante toda a madrugada dentro de sua própria casa.
Assim, aos olhos dos agressores, o Sistema de Justiça não se sustentaria para impedi-los de fazer o que bem entenderem, não existindo, de fato, segurança à vítima.
Em similar análise do mesmo Juizado, após o deferimento das medidas protetivas de forma genérica, o agressor difamou e caluniou a vítima por meio das redes sociais, publicando vídeos íntimos e áudios, além de conceder entrevistas para as mídias digitais ratificando seus argumentos contra a ex-esposa. Esta vítima, até hoje, não conseguiu que o conteúdo fosse apagado e, sequer, foi indenizada pelos danos sofridos.
Por fim, há um caso também do Rio de Janeiro em que a vítima já protegida por meio do afastamento do agressor do lar, recebeu uma notificação extrajudicial do patrono do réu, a respeito de sua ocupação clandestina, estabelecendo prazo para a sua saída do imóvel comum, sob pena das medidas legais cabíveis.
Em muitos casos, antes do feminicídio se consumar, a mulher já havia pedido medida protetiva, ou, ao menos, ido a delegacia registrar a agressão. De alguma forma, o Sistema de Justiça tinha conhecimento daquele caso e não tomou as medidas apropriadas para evitar uma morte.
Destarte, é preciso que a realidade vivenciada pela vítima seja levada em consideração no momento do deferimento das medidas protetivas, para que esta mulher tenha o efetivo aparato protetivo e se sinta, finalmente, segura.
O descumprimento das medidas protetivas é crime tipificado no artigo 24-A da Lei nº 11.340/2006, devendo ser aplicado pelo Poder Judiciário. As medidas protetivas devem ser fiscalizadas e, ainda que não concedidas, deve ser implementada uma integração entre o Sistema de Justiça e o Sistema de Segurança Pública por meio do compartilhamento de informações a fim de evitar a ocorrência do feminicídio.
Desse modo, é imprescindível que as medidas protetivas deferidas sejam aplicadas de acordo com a necessidade do caso concreto, analisando-se quais meios seriam efetivos e aptos a proteção da vítima por meio de fiscalização e controle pelo Poder Judiciário, pois de nada adianta a concessão de medidas genéricas sem o acompanhamento real do caso.
1 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Violência contra mulheres em 2021. <https://forumseguranca. org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf>. Acesso em 13. set. 2022.
2 Idem.
3 PIOVASAN, Flávia; PIMENTEL, Silvia. A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil. Disponível em: <https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digital oceanspaces.com/2014/02/1_6_responsabilidade-internacional.pdf>. Acesso em: 15. set. 2022.
4 ONU Mulheres Brasil. Planeta 50-50 em 2030. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br /planeta5050/>. Acesso em: 15. set. 2022.
5 Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório nº 54/01. Caso 12.051. Maria da Penha Maia Fernandes versus Brasil. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em 15. set. 2022.
6 Artigo 22 e seus incisos da Lei nº 11.340/2006.
7 Conselho Nacional de Justiça. Manual de rotinas e estruturação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/b3f18ac2f32a661bd02ca82c1afbe3bb.pdf>. Acesso em: 15. set. 2022.
8 Ibdfam. Justiça do Rio concedeu 15 mil medidas protetivas em 2022 para vítimas de violência doméstica. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/noticias/9868/Justi%C3%A7a+do+Rio+concedeu+15+mil+medi das+protetivas+em+2022+para+v%C3%ADtimas+de+viol%C3%AAncia+dom%C3%A9stica#:~:text=Conforme%20reportagem%20do%20Jornal%20Extra,para%20o%20Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a>. Acesso em: 15. set. 2022.
9 Aplicativo Maria da Penha Virtual. Disponível em: <https://www3.tjrj.jus.br/mariapenhavirtual/>. Acesso em 15. set. 2022.
10 FONAVID. ENUNCIADO 37: A concessão da medida protetiva de urgência não está condicionada à existência de fato que configure, em tese, ilícito penal.
11 FONAVID. ENUNCIADO 45: As medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006 podem ser deferidas de forma autônoma, apenas com base na palavra da vítima, quando ausentes outros elementos probantes nos autos.
Bibliografia:
Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha);
Decreto 1.973/1996 (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher);
Decreto nº 4.377/2002 (Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher);
Aplicativo Maria da Penha Virtual. Disponível em: <https://www3.tjrj.jus.br/mariapenhavirtual/>. Acesso em 15. set. 2022;
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório nº 54/01. Caso 12.051. Maria da Penha Maia Fernandes versus Brasil. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em 15. set. 2022;
Conselho Nacional de Justiça. Manual de rotinas e estruturação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, 2018. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/b3f18ac2f32a661bd02ca82c1afbe3bb.pdf>. Acesso em: 15. set. 2022;
FONAVID. ENUNCIADO 37: A concessão da medida protetiva de urgência não está condicionada à existência de fato que configure, em tese, ilícito penal;
FONAVID. ENUNCIADO 45: As medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006 podem ser deferidas de forma autônoma, apenas com base na palavra da vítima, quando ausentes outros elementos probantes nos autos;
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Violência contra mulheres em 2021. <https://forumseguranca. org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf>. Acesso em 13. set. 2022;
Ibdfam. Justiça do Rio concedeu 15 mil medidas protetivas em 2022 para vítimas de violência doméstica. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/noticias/9868/Justi% C3%A7a+do+Rio+concedeu+15+mil+medidas+protetivas+em+2022+para+v%C3%ADtimas+de+viol%C3%AAncia+dom%C3%A9stica#:~:text=Conforme%20reportagem%20do%20Jornal%20Extra,para%20o%20Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a>. Acesso em: 15. set. 2022;
ONU Mulheres Brasil. Planeta 50-50 em 2030. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br /planeta5050/>. Acesso em: 15. set. 2022;
PIOVASAN, Flávia; PIMENTEL, Silvia. A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil. Disponível em: <https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digital oceanspaces.com/2014/02/1_6_responsabilidade-internacional.pdf>. Acesso em: 15. set. 2022.
Gabriela Moura de Oliveira é advogada.
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