Por Lincoln Penna –
O povo brasileiro, aqui entendido como o conjunto de sua população com as inevitáveis classes sociais que dele fazem parte, possui o que se convencionou chamar de uma cultura política. Entendo por isso, o conjunto de práticas sociais, culturais e naturalmente políticas que se foram sedimentando ao longo do tempo. E se refletem no comportamento padrão de sua gente, independentemente de suas origens de classe, pois estas, embora tenham suas respectivas visões de mundo e interesses que lhes são inerentes, acabam por reproduzir sem o saber as tais práticas que constituem a cultura política brasileira.
Essa questão é altamente instigante e delicada. Instigante porque pode ser vista como o atropelo de um conceito mais abrangente em face de outro mais socialmente constituído e real, que é o conceito de classe social. Mas, na história, que trabalha com o tempo, os elementos de permanência não devem ser desconsiderados, até porque eles se situam no tempo longo a atravessar as estruturas e relações sociais, que por seu turno obedecem a certa mobilidade.
Logo, enquanto a cultura política se mantem praticamente estável, as relações de classe tendem a se modificar, mesmo quando não acontecem mudanças bruscas de caráter revolucionárias.
Logo, examinar um quadro político de curto prazo, como por exemplo a avaliação de um governo ou de um processo eleitoral, apenas pela identificação de cunho ideológico pode nos levar a entender de forma incompleta essas realidades. Isto posto, nos coloca diante de uma outra questão, esta de caráter delicado. Refiro-me à relação entre ideologia e cultura política ou ainda entre ideologia e mentalidade coletiva, questão que me tem levado a refletir sobre qual a primazia na comparação entre esses dois conceitos, pois se a ideologia corresponde às características de uma classe social, a cultura política ou a mentalidade coletiva – se quisermos entende-la como conceitos parentais – decorre de uma tradição histórica fundada no tempo.
É claro que essa tradição foi grandemente calcada em valores e visões de mundo decorrentes das classes dominantes, porquanto numa sociedade de classes (desculpem o pleonasmo, já que toda sociedade é de classes) os valores dominantes são incorporados pelas classes subalternas, que os reproduzem. Daí, a necessidade de se construir as consciências de classes, de si e para si, para que essas classes dominadas possam reconhecer a sua condição e uma vez reconhecida empreender de forma consciente a luta contra a sua sujeição aos valores dominantes. Esse é um processo que se produz nas lutas de classes, que ocorrem como fato social, próprio das relações sociais a envolver as classes ao longo da história das sociedades.
O que assistimos no Brasil nesses tenebrosos tempos de pandemia e de desgoverno é a imagem de uma sociedade que trava um embate entre as representações históricas de sua cultura política marcadamente autoritária, preconceituosa, ignorante e racista até a medula e as forças sociais que surgiram historicamente dos processos sociais que rejeitam essas permanências malditas, mas que resistem a mudanças e têm amparo numa visão de mundo profundamente arredia a toda e qualquer transformação que remova esses valores de subserviência ao passado colonial e à autoridade de plantão.
As lutas de classes que se travam no Brasil de hoje não se resumem apenas ao enfrentamento entre os que vendem a força de trabalho e os que detém os meios de produção.
Este é o pano de fundo permanente numa sociedade de classes e capitalista. Mas, estamos diante de uma realidade na qual é imperioso que destaquemos a forte presença de traços correspondentes a nossa cultura política. Esta foi e tem sido caracterizada pelo cultivo do que é mais odioso na contemporaneidade, que é o seu caráter de negação a tudo que representa novidade, seja no campo da ciência ou do comportamento humano. É urgente que se restitua o que essa cultura política tem de menos perverso e que escapou de forma marginal, que é a maneira pela qual o povo humilde de origem escrava, sobreviveu, solidário e capaz de construir uma nação próspera, soberana e com justiça social.
Sem abandonar até por impossibilidade a referência de classe, é preciso que se entenda que não há fórmulas prontas para a superação desse desafio que o desejo de mudança a ser concretizado tem pela frente, sem que se tenha clara a referência ao peso de nosso passado ainda muito presente. No momento ele se apresenta como a mais completa representação de nossa cultura política, no que ela tem de mais perverso. Remover seus traços, não é um ato de vontade, já que ele se encontra impregnado em nossa sociedade, mas ter clareza de sua influência no comportamento do povo brasileiro em geral é algo importante para que se compreenda os retrocessos que rondam todas as possibilidades de avanço na direção da sua superação.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional; Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
Related posts
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo