Por Lincoln Penna –
Em memória de Astrojildo Pereira.
Os princípios da legalidade e da defesa da soberania nacional marcaram muito a minha geração, voltada para o culto dos valores democráticos e libertários. E eles foram mais vigorosamente sustentados por ocasião do golpe de 64 e dos governos militares. Em conluio com os segmentos empresariais. Veio a denominada redemocratização e com isso tais princípios passaram a ser pouco cobrados dos governos civis, certo estávamos de que se tratava já de fato consumado o acatamento desses princípios.
O resultado eleitoral de 2018 e a conseqüente ascensão de uma opção antidemocrática lastreada numa suposta caça aos corruptos trouxe de volta o necessário combate em defesa daqueles princípios. Mais do que era de se esperar, o atual governo passou a se direcionar no caminho de um totalitarismo messiânico capaz de destruírem todas as conquistas da redemocratização, incluindo a Constituição de 1988, permanentemente transgredida.
O recurso ao impeachment tem sido acionado por inúmeros cidadãos e entidades da sociedade civil. Desta vez, a propósito de crimes cometidos sistematicamente de modo a violar preceitos legais de forma reiterada. Mas como se trata de decisões que passam por um Congresso majoritariamente constituído por membros favoráveis à continuidade do presidente eleito, como se Collor e Dilma não tivessem sido igualmente eleitos, tais encaminhamentos têm o destino de uma vala comum, o arquivamento.
Restam as ruas a demonstrarem com todas as restrições provocadas pela pandemia que há um forte descontentamento cujo resultado não pode ser outro senão a saída de um presidente repudiado pela opinião pública nacional e internacional. E quando as ruas se manifestam é porque é hora de mudança, que pode seguir os ritos protocolares de um afastamento desejado de quem está infelicitando o povo ou através de interrupções extralegais, o que está fora de cogitação de vez que se trata de iniciativas que atropelam a ordem legal e constitucional. Ações golpistas só interessam aos inimigos da democracia e as oposições que bradaram pela defesa intransigente dos princípios democráticos e legalistas não podem embarcar nessa canoa furada.
Resta, portanto, o bom combate. Aquele que ocorre nas trincheiras da própria democracia a acolher os embates políticos e ideológicos. Nesta o campo de experimentação é amplo, nele pode estar presente toda sorte de práticas voltadas para o aprofundamento das querelas entre forças sociais e políticas distintas, de maneira a tornar legítimo o triunfo dos que reunirem maior número de compatriotas. Esta democracia de interesses de classes conflitantes funda as bases do ideário verdadeiramente democrático, não a democracia fantasiosa do expurgo social das massas hoje lamentavelmente cristalizado em nosso país.
Contra o projeto de desmonte do estado nacional e da supremacia do mercado sobre as demandas sociais reprimidas cabe acenar para uma atitude de resistência nacional, soberana e popular, sem o que estaremos sendo involuntariamente cúmplice de um processo de esgarçamento da nação brasileira, cujas culturas formadoras do povo brasileiro já enfrentam um processo de repressão continuada. As comunidades nativas (indígenas) e as de origem africanas têm enfrentado o ódio de setores das classes dominantes e as manifestações do racismo impregnado e realimentado pela cultura da intolerância e da aversão ao povo.
A não aceitação da intolerância como método de ação política não significa um comportamento pacifista.
Ao contrário, a apatia e a recusa ao bom combate é que pode incentivar os pregadores do caos para benefício próprio. É preciso levar as formas de resistência à extremidade dos limites, sem o que estaremos a naturalizar uma situação que não pode ser naturalizada em nome do rigor absoluto com os resultados eleitorais, como se a democracia tivesse que em seu nome aceitar a sua própria destruição, mesmo mediante o beneplácito das urnas. É bom lembrar que tiranos foram também eleitos e quase destruíram países como Itália e Alemanha.
Ser subversivo é, sem rodeios, subverter um estado de coisas que fere todos os valores que cultivamos inclusive, e principalmente, a dignidade de um povo ou dos povos que nos constituem como nação múltipla, diversificada e em condições de se edificar um país que construa sua existência e o futuro de suas próximas gerações, hoje em dia terrivelmente ameaçado.
Astrojildo Pereira é lembrado nessas linhas porque ele não foi um panfletário no sentido de vulgarizar suas concepções políticas e ideológicas. Ocupou com elegância o jornalismo opinativo e contundente zelando pelo trato fundamentado de seus artigos. Fez de suas matérias um espaço de reflexão e de expressão do bom combate. Por isso mesmo tornou-se uma referência na defesa de um ideário que marcou a trajetória de uma vida plena de razão porque a cada inserção de suas contribuições se encontrava a argumentação convincente de seu conteúdo, sempre dizendo que exercia sua crítica impura porque com base em ideias, que propagava com honestidade intelectual, sem precisar adjetivar aqueles que pensavam e defendiam teses diferentes das suas.
Por certo, Astrojildo, leitor apaixonado das crônicas e dos escritos de Machado de Assis, a quem ele fez questão de velá-lo quando de sua morte, ainda adolescente, explica o valor de suas crônicas subversivas. Cultor das palavras e seu sentido exato foi um dos fundadores da Seção Brasileira da Internacional Comunista, batizada em 1922 de Partido Comunista do Brasil, e mereceu o apreço até mesmo de seus oponentes no campo das ideias. Manteve-se íntegro quando foi afastado do partido que havia fundado em razão de uma orientação sectária e fiel aos seus princípios originais.
Como seria bom e oportuno tê-lo agora entre nós? Contra o fascismo nascente e desprovido de ideários, salvo o da destruição dos valores que cultivamos, é preciso lançar mão da argumentação vigorosa, combativa, diante da imbecilidade, da mesma maneira que nos ensinou Astrojildo Pereira. Vale lembrar o português exilado no Brasil, António Francisco Correia, que adotou o pseudônimo de Edgar Rodrigues e escreveu em seu livro Alvorada Operária frase que segue:
“Feliz o povo que contou com trabalhadores de tão elevado princípios éticos e profissionais, capazes de criar uma cultura proletária, uma doutrina humanista, usando o cérebro e as mãos na razão direta do bem-estar universal da HUMANIDADE – trazendo em sua essência um só objetivo: A Igualdade Social!”
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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